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domingo, 27 de abril de 2025

TEATRO: "House"



TEATRO: “House”
Dramaturgia e encenação | Amos Gitai
Direcção musical | Richard Wilberforce
Figurinos | Marie La Rocca
Interpretação | Bahira Ablassi, Dima Bawab, Irène Jacob, Alexey Kochetkov, Micha Lescot, Pini Mittelman, Kioomars Musayyebi, Menashe Noy, Minas Qarawany, Mark Bonney, Danielle O’Neill, Nathan Mercieca, Ghassan Ashkar
Produção | La Colline – Théâtre National
150 Minutos (sem intervalo) | Maiores de 12 Anos
Teatros del Canal - Sala Roja Concha Velasco
25 Abr 2025 | sex | 20:00


Não é a primeira vez que Amos Gitai aborda o conflito israelo-palestiniano e as vias possíveis para o diálogo. Uma das peças marcantes da edição de 2016 do Festival de Avignon, “Yitzhak Rabin: Crónica de um Assassinato” inscrevia-se numa tradição crítica mais ampla de revolta contra o domínio nacionalista levado a cabo por Israel. Com “House”, Gitai denuncia as lógicas violentas do lar e das pátrias, mostrando a realidade concreta de uma casa em Jerusalém Ocidental e a forma como abriga a memória multi-direcional do confronto entre judeus e palestinianos. À medida que são extraídas, cinzeladas, rachadas, cimentadas e erguidas, as pedras tornam-se metáforas do conflito e testemunham a construção de casas que se transformam em ferramentas de destruição, expulsão e violência ontológica mútua. Importa lembrar que a peça estreou na Primavera de 2023, meio ano antes do 7 de Outubro e das atrocidades cometidas pelo Hamas que resultaram no genocídio palestiniano a que assistimos ainda hoje. Premonitória, a peça narra as historias de sucessivos habitantes - árabes e judeus, palestinianos e israelitas -, evocando o destino de cada um deles ao mesmo tempo que evidencia a violência gerada por situações de deslocamento e desapropriação que se tem intensificado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Dois pedreiros palestinianos conduzem a peça. Enquanto cinzelam, fendem, cimentam e erguem os blocos de arenito uns sobre os outros, vão dando a conhecer as histórias dos habitantes, construtores e vizinhos desta casa, originalmente propriedade dos Dajani, uma poderosa família palestiniana que se viu forçada a abandoná-la em 1948, durante o Massacre de Deir Yassin, quando a milícia sionista expulsou os palestinianos das aldeias em redor de Jerusalém para fundar o Estado de Israel. A tentativa sionista de “devolver a nação judaica à sua terra natal” catalisou a expulsão de 750.000 palestinianos, cujas casas, confiscadas por meios legais tortuosos e variados - nomeadamente a chamada Lei de Propriedade Ausente, de 1949 -, serviram para abrigar duzentos mil imigrantes judeus de toda a diáspora. À sua volta, vão-se misturando os testemunhos da família Toboul, da Argélia, dos Cesaris, da Turquia e depois da Suécia, de Haïm Barkai, um rico negociante judeu que está a reformar a casa, ou do vizinho Michel Kishka, de Bruxelas, que dividiu a cozinha comum para criar uma forma de distanciamento. Mas é a voz dos pedreiros que se impõe, mostrando o porquê de estarem ali, a raiva que se alimenta de mágoa, o absurdo de verem demolidas as casas que ergueram com as próprias mãos, sob o pretexto de que foram construídas ilegalmente.

“House” resulta de um convite do dramaturgo canadiano de origem libanesa e director do La Colline - Théâtre Nacional ao cineasta e dramaturgo israelita Amos Gitai para levar à cena a sua trilogia documental “House”, censurada pelas autoridades israelitas. Ao quebrar todas as barreiras, este gesto mostra que, ainda que momentaneamente, as hostilidades geopolíticas podem ser ultrapassadas por meio de um acto de hospitalidade artística, que exige o reconhecimento do outro como irredutivelmente outro. Um gesto que se abre à alteridade e que torna possível uma relação ética que desafie a desumanização e a eliminação desenfreadas. “House” é a prova de que a barbárie pode ser superada através da criação de espaços onde os “inimigos” possam ainda dialogar e fazer ouvir em conjunto uma voz, mesmo que infinitamente pequena, que não seja a do ódio. Neste sentido, o teatro pode ser esse espaço, uma gota de água contra a corrente, uma tentativa de participar na costura do tecido da esperança, mil vezes rasgado, mil vezes despedaçado, feito em pedaços. Mostrar hospitalidade ao estrangeiro, ao artista convidado-estranho, da Síria, do Líbano, de Israel, da Palestina, do Irão, implica cruzar fronteiras ou limiares políticos que lutam contra a violência repressiva da “barbárie”. É através dessa lente oblíqua de hospitalidade distorcida na criação de uma pátria soberana que podemos ver “House”, corporizando relações transversais que vão muito além da política.

Ao atrair-nos para a teia emaranhada de violência ontológica por trás do projeto sionista de anexar lares palestinos, Gitai rejeita qualquer enquadramento dialético. A violência de construir uma casa sobre as ruínas de outra, ou de viver dentro da casa de outra pessoa, faz parte da identidade israelita, ao mesmo tempo que procura apagar da história qualquer traço de presença palestiniana. A dominação transversal do colonialismo de povoamento, que busca estabelecer uma pátria permanente por meio do deslocamento, é visceralmente sentida através do refrão percussivo dos dois pedreiros martelando blocos de arenito ao longo das duas horas e meia de duração da peça, os ritmos sincopados formando como que um coro pulsante de violência que abafa qualquer perspectiva de paz ou tranquilidade. Na peça, alguém faz a analogia da questão israelo-palestiniana como se fosse uma casa tomada pelos israelitas, os quais abrem uma pequena fresta na janela por onde gritam: “Vamos conversar e resolver o problema”. Mas os palestinianos dizem: “Se vocês querem resolver o problema, abram a porta para podermos entrar e sentar, e depois discutimos o problema”. A Palestina é uma casa em que, de repente, os donos mudam e os novos donos discutem com os antigos donos como resolver o problema, ainda que mantendo-os do lado de fora.


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