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domingo, 6 de abril de 2025

LIVRO: “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos”



LIVRO: “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos”,
de Hélder Bruno Martins
Ed. Cordel D’ Prata, Maio de 2024


“Foi em Londres, numa noite em que Miles Davis, esse génio comercial, abria o concerto, e que o fechava era um tipo do free jazz, o Archie Shepp (…). Assisti à atuação do Shepp sentado na fila da frente, a levar com o free na cara. Pensava: ‘Só sais daqui quando gostares disto.’ Lutei muito contra mim mesmo, contra o meu organismo. Até que, de repente, me dei a entender esse jazz novo, com novas regras e novas sonoridades.”

“Um… dois… um, dois, três, quatro, Cinco Minutos de Jazz”. Se, numa roda de amigos, alguém se lembrar de dizer esta frase, com as pausas no devido lugar, é certo que logo um ou mais convivas trautearão os acordes de uma música que marcou gerações graças a um programa de rádio. A grande maioria não saberá que se trata de “Lou’s Blues”, um tema interpretado pelo sexteto de Lou Donaldson, da mesma forma que terão dificuldade em dizer que é do programa mais antigo de sempre da rádio portuguesa que se fala, no ar entre 21 de Fevereiro de 1966 e 2023. Mas estou certo que, independentemente do gosto que cada um possa nutrir por este género musical, todos associarão o nome de José Duarte a um extraordinário momento de rádio, a face mais visível de uma vida dedicada ao jazz e à sua mediação enquanto produtor de programas, concertos e edições discográficas (foi o responsável pela gravação do primeiro disco de jazz em Portugal), jornalista, escritor de livros, curador de exposições, conferencista e, mais recentemente, professor auxiliar convidado da Universidade de Aveiro, instituição à qual legou uma parte do seu arquivo pessoal e contribuiu para a criação do Centro de Estudos de Jazz.

“É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos” resulta de um exercício colaborativo de escrita biográfica, assente em oito horas de entrevistas transcritas e trabalhadas por Hélder Bruno Martins em parceria com José Duarte, e no trabalho de investigação do imenso acervo de um colecionador impulsivo. No livro avultam algumas facetas curiosas da sua vida, nomeadamente as superstições, a “mania” de Santo António, o amor às palavras, [Álvaro Cunhal] o maior em “swing”, um tio que lia Heráclito e esteve preso no Tarrafal, a viagem a Houston para acompanhar a queda da missão Apolo 13, uma decepcionante primeira ida ao Hot Club de Portugal, a declaração política de Charlie Haden contra o colonialismo, o convite do José Cardoso Pires para escrever no Diário de Lisboa, a importância de Raul Calado na sua vida, a recusa em assessorar Louis Armstrong, uma ida com o Dizzy Gillespie “ver o Eusébio”, um copo com Mário Soares, uma conversa com Betty Carter. Já no tocante aos Cinco Minutos de Jazz, as curiosidades começam logo com a edição inaugural do programa a ir para o ar no preciso momento em que pisava pela primeira vez as tábuas do mítico Village Vanguard de Nova Iorque e estendem-se a uma “gaffe” que mete John Coltrane e um Monsenhor ao barulho, à sua discografia particular que alimentou o programa na íntegra ou ao salário sempre baixíssimo na rádio.

A leitura pessoal deste trabalho de Hélder Bruno Martins não ficaria completa sem uma abordagem à segunda parte do livro, seu complemento e contextualização. “É jazz quando me chegam lágrimas aos olhos” nasce da tese de doutoramento que o autor apresentou em 2020, desenvolvida no âmbito da etnomusicologia, sob a orientação de Susana Sardo, Professora Catedrática da Universidade de Aveiro. Ao abordar questões e conceitos relacionados com identidade, emoções, história de vida, arquivos e colecções, Hélder Bruno Martins mergulhou a fundo na vida e obra de José Duarte, um dos divulgadores e mediadores de jazz mais influentes em Portugal desde a segunda metade do século XX e cuja acção foi especialmente importante durante o período do Estado Novo, quando o contexto social, cultural e político, relegava o jazz para um plano de marginalidade. Combinar a coloquialidade de um registo biográfico assente em conversas ou mensagens escritas, com o cânone académico foi o grande desafio que o autor se colocou a si próprio, daí resultando um livro de enorme valor e interesse, com uma escrita elegante e fluida, riquíssimo em informação nos domínios teórico e prático sobre a pessoa biografada e o universo do jazz no nosso país. Um livro que importa, muito em particular, aos fãs de José Duarte. Que, afinal, somos todos.

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