Páginas

quinta-feira, 17 de abril de 2025

CINEMA: "Cão Preto"



CINEMA: “Cão Preto” / “Gouzhen”
Realização | Guan Hu
Argumento | Rui Ge, Guan Hu, Bing Wu
Fotografia | Weizhe Gao
Montagem | Matthieu Laclau
Interpretação | Eddie Peng, Liya Tong, Jia Zhang-ke, You Zhou, Xiaoguang Hu, Yiquan Wang, Ben Niu, Yuanzhang Yin, Li Zhang, Hongzhe Mo-Tu, You Wu, Youwei Da, Chu Bu Hua Jie, Naixun Wang, Yi Zhang, Hong Yuan, Wei Chen, Yi Zhao, Jianya Zhang, Baoliang Sha
Produção | Jing Liang, Jia Zhao, Wenjiu Zhu
China | 2024 | Drama, Thriller | 116 Minutos | Maiores de 14 Anos
Cinema Trindade – Sala 2
16 Abr 2025 | qua | 17:15


“Cão Preto” abre com uma paisagem recortada de montanhas irregulares e vegetação escassa, exposta ao vento e às escuras areias do deserto do Gobi. Neste ambiente inóspito e desolador, um autocarro entra em rota de colisão com uma matilha de cães vadios, conseguindo evitá-los graças a uma manobra arriscada que termina em despiste. Do meio da espessa nuvem de poeira irrompem alguns passageiros desgrenhados, entre os quais Lang, antigo acrobata, de regresso à sua cidade natal após uma década de ausência. O homem foi em tempos uma celebridade local, mas as coisas entretanto mudaram: outrora próspera, a cidade caiu ruinosamente na apatia, o pai está a morrer refém do álcool e alguns antigos admiradores olham-no agora com desconfiança pelo eventual envolvimento na morte do sobrinho de um mafioso local. Enquanto não encontra os meios de provar a sua inocência, Lang integra-se numa brigada especial que tem por missão capturar os cães vadios e devolver à cidade uma imagem de harmonia e segurança, agora que se aproximam os Jogos Olímpicos de Pequim 2008. É com um desses animais, aparentemente indomável, que acaba por criar uma sólida relação de confiança.

Sob o signo de uma China em acelerada transformação social e económica, com o chamado “socialismo de mercado” a afirmar-se na sequência da crise financeira de 2008, Guan Hu oferece-nos o retrato irónico de uma sociedade a muitas velocidades, na qual caçadores e presas parecem replicar, metaforicamente, um regime autocrático marcado por convicções ferozes e profundas contradições. Se os caçadores se apresentam como personagens de farsa, caricaturas do género humano na sua expressão mais acabada de inabilidade e desadaptação, os cães são exemplares de várias raças e tipos, todos eles lindíssimos, seres encantadores se observados na sua individualidade, mas capazes dos maiores estragos quando em matilha. A caçada tem um cunho burlesco, com a equipa a usar o mesmo tipo de redes que recordamos dos apanhadores de borboletas nos desenhos animados antigos, um ou outro homem mais desprevenido a ser alvo de uma mordidela enquanto o líder da equipa ordena que tenham cuidado para não magoar os animais.

Embora um certo registo de comédia se imponha ao longo do filme, “Cão Preto” não pode deixar de ser olhado com uma infinita tristeza, a inaptidão deste homem para desempenhar o papel de “caçador” a revelar-se como um dos seus traços mais marcantes. Desenhado em torno de uma personagem de quem praticamente não se ouve um som, o filme faz dos animais heróis improváveis, num mundo que se vai esquecendo dos valores da cumplicidade e da amizade. Os leves toques de humor surgem-nos contaminados pelo mal que parece ameaçar a cidade, seja através das atitudes vingativas de um carniceiro sem escrúpulos que aplica aos seus inimigos os castigos mais cruéis, seja pelos cataclismos que se anunciam na forma de um eclipse total do sol. Sem espaço para remissão ou redenção, Lang estabelece com o cão uma relação de amizade sincera, muito diferente da transitoriedade das relações entre os homens. No final, o homem está pronto para recomeçar tudo de novo, levando na bagagem a melhor das companhias. Vencedor da categoria “Un Certain Regard” do Festival de Cannes, “Cão Preto” é a demonstração do quanto os animais podem fazer de nós seres mais compreensivos, tolerantes e humanos.

Sem comentários:

Enviar um comentário