Páginas

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

EXPOSIÇÃO: “O Impulso Fotográfico: (Des)arrumar o arquivo colonial”



EXPOSIÇÃO: “O Impulso Fotográfico: (Des)arrumar o arquivo colonial”
Museu Nacional de História Natural e da Ciência
21 Dez 2022 > 31 Dez 2025


“ (…) Numerados e empacotados
Logo à nascença,
acelerados
pela mesma crença,
na mesma prensa
somos marcados,
ainda de fralda
doutrinados;
somos criados
à base de números,
em série de processos efémeros…

Idade: Tanto,
Inteligência: Tanto.”

Até ao final do ano há uma exposição imperdível para ver no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. Intitula-se “O Impulso Fotográfico” e alude à expansão da fotografia pelo mundo, e consequentemente à sua apropriação considerada fidedigna e realista. Nesta exposição, a expansão da fotografia associa-se à expansão científica colonial, e a uma certa vocação colonial da fotografia sob a forma de uma tecnologia usada pela ciência para medir, classificar e arquivar documentos de modo potencialmente infinito, reprodutível e difundido de forma massificada. Partindo desta obsessão pela medição e classificação, são apresentados os modos como territórios e corpos africanos foram medidos e apropriados durante as missões científicas de geodesia, geografia e antropologia e como se difundiram as narrativas da ciência colonial. Mas também se mostra como resistiram, através de outras histórias, ficcionais ou não, desvendadas e criadas pelo sentido crítico da curadoria participativa de artistas, investigadores e activistas.

Qual o significado destas colecções de fotografias e objectos, no presente, para as diferentes comunidades?  Que marcas deixaram enraizadas na sociedade? O que mostrar e como mostrar? “O Impulso Fotográfico” é o resultado destes encontros, dúvidas e questionamentos da equipa multidisciplinar que se envolveu em diferentes fases do projecto, desde a conservação e restauro à digitalização de fotografias e filmes, desde a investigação teórica às propostas artísticas, até à própria construção museográfica. O resultado pode ser visto numa ampla sala do Museu, juntando às muitas fotografias que documentam ordens, regimes, técnicas e processos, um conjunto de outros elementos que vão dos simples recortes de jornais a livros de temática colonialista, de reproduções físicas de espaços de investigação a materiais científicos usados nas várias campanhas. Todos eles documentam aquilo que podemos considerar como importantes meios de demonstração da “ocupação efectiva” ou “provas da invasão”, neutros e desinteressados apenas na aparência, mas profundamente políticos.

Delimitadas as fronteiras coloniais, o interesse do estado Português vira-se, a partir da década de 1930, sob o regime fascista de Salazar, para o conhecimento científico das potenciais riquezas das colónias. Uma dessas “riquezas” é a força de trabalho dos corpos colonizados, tornados objectos de estudo com vista a determinar as capacidades físicas e psicológicas da sua “raça”, para uma sua mais eficiente exploração. Este foi um dos principais desígnios da antropologia colonial portuguesa, lançando as bases do “racismo científico” ao procurar explicar a evolução biológica da espécie humana, aplicando os princípios do lamarckismo e do darwinismo acerca da evolução das espécies e da hereditariedade, para criar uma escala evolutiva de “raças” superiores e inferiores, explicando o cultural pelo biológico. Neste contexto, o registo de dados massivos sobre o corpo foi central: produziram-se milhares de fotografias e de medições antropometricas, de cariz médico, registadas em outras tantas fichas. O que não foi entendido foi considerado como feitiço.

Esta é uma exposição concebida para questionar e ser questionada. Por isso o projecto museográfico desta exposição assume o mote da desarrumação, do trabalho em curso e do inacabado. Nessa “desarrumação” encontramos a figura de Mário Domingues, nascido na ilha do Príncipe em 1899, escritor e jornalista, e que foi um dos grandes impulsionadores do Movimento Negro em Portugal, travando uma importante luta contra o racismo e iniciando um “processo embrionário e ambivalente de questionamento do colonialismo durante a primeira república portuguesa e a ditadura do Estado Novo. Outra das marcas da exposição é a oferta de livros que se interpõem no livre curso do visitante, obrigando-o a olhar para títulos como “As prisões estão obsoletas?” de Angela Davis, “No seu pescoço” de Chimamanda Ngozi Adichie ou “O Alegre Canto da Perdiz” de Paulina Chiziane. E porque “de boas intenções está a (des)colonização cheia”, abre-se ao visitante o “Mural das Contradições”, onde pode deixar as suas críticas e reflexões. É lá que se reclama “emprego e educação dignos aos negros em Lisboa hoje”, se lembra que “racismo é crime” e onde, 156 anos após o seu advento, ainda há quem advogue o “fim da escravatura”.

Sem comentários:

Enviar um comentário