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domingo, 23 de fevereiro de 2025

LIVRO: "Campo dos Bargos"



LIVRO: “Campo dos Bargos - O futebol ou a recuperação semanal da infância”,
de Jorge Reis-Sá
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2022


“Tenho saudades de ver a bancada nova completamente cheia. E o peão a começar a encher, às três menos um quarto. Quando entrávamos nos Bargos, eu e o meu avô medíamos a quantidade de gente que ia assistir com um rápido olhar ao peão. A entrada para a bancada central - no meio os cativos, e em cada um dos lados a chamada ‘lateral’ ou ‘de madeira’, sem lugares marcados - faz-se por um canto da superior sul. Caminham-se dez ou quinze metros, vendo no relvado os jogadores a terminar o aquecimento. E pára-se no pequeno monte, no vértice, onde, antes de descer três ou quatro degraus para ficarmos ao nível do relvado e procurarmos o nosso lugar na de madeira ou caminharmos para os cativos, se tem uma maravilhosa panorâmica de todo o campo: a sua opulência airosa, com o sol a brilhar na relva, as árvores do peão a ondularem ao vento e a bancada com a claque a cantar.”

Se as memórias de infância do leitor passam por uma ida ao futebol aos domingos às três da tarde, levados pela mão do pai ou do avô, então este livro é para si. Por maioria de razão se o clube da sua predileção, por essa altura, não seja o Porto, o Sporting ou o Benfica. Jorge Reis-Sá nasceu na Castela, a 300 metros do Campo dos Bargos, o mesmo onde o Futebol Clube de Famalicão passeava o azul e branco aos domingos. Para ele, escrever este livro foi regressar à infância, “à entrada nos cativos pelo braço do meu avô, à ida ao bar para trazer as batatas fritas pelo intervalo, à aprendizagem da ciência por outro intervalo: o da diferença, ainda que mínima mas que percebemos existir, no tempo que demorámos a ouvir o som do bombo da claque na bancada oposta e a visão que tivemos do rapaz a bater nele.” Na sua essência, o autor fala-nos da forma como cresceu e se sedimentou nele a paixão pelo Vila Nova, as figuras que aprendeu a amar - o Feliz, o Toni Martinez, o Menad, o Carlos Miguel, o Lula, o Murta -, as míticas deslocações às Aves, a Vidal Pinheiro ou à Póvoa, uma tarde desastrosa no “galinheiro” da Luz. Mas também do Guilherme e de como a paixão se inculca nos genes e passa de pais para filhos.

Ao ler “Campo dos Bargos”, também a memória me bateu. Recordo a minha primeira ida ao Marques da Silva, com cinco ou seis anos, pela mão do meu pai. Quando entrámos para o peão já rolava a bola e, no preciso momento em que passávamos por detrás da baliza do S. João de Ver, reparo no Kiki todo no ar, olhos e cabeça na bola, estava aberto o activo. Foi o golo mais bonito da minha vida, o mais mágico, o que perdura até hoje, aquele rugido a mil gargantas, com toda a gente a saltar à minha volta e a embalar a Ovarense para uma saborosa goleada. Era o tempo do Pepe e do Malícia, do Justino, do Rilho, do Graça e do Mulatinho, o tempo em que cheguei a ir com a equipa no autocarro ver alguns jogos fora, levado pelo saudoso Proença. Mas ao contrário de Jorge Reis-Sá, o meu coração viria a mudar de cor e acabaria por pender para o Beira-Mar, por quem bate ainda hoje. É dos alvi-negros, da era pós-Eusébio, que recordo os muitos jogos vividos no Mário Duarte, as idas a Espinho ou a Águeda, o descobrir da minha miopia numa célebre tarde em Aveiro contra o Rio Ave, intrigado pela súbita incapacidade em descortinar os jogadores da equipa adversária, reconhecendo apenas a figura do Washington, devido à cor da pele.

Mas “Campo dos Bargos” não é apenas a revisitação dos bons e maus momentos do Vila Nova de Jorge Reis-Sá, desde que se conhece. Ele é, também, uma forma muito pessoal de abordar um fenómeno que move multidões e faz correr rios de tinta e de dinheiro, ao mesmo tempo que presta homenagem aos vários agentes do futebol, através deles mostrando o desporto-rei nas suas múltiplas vertentes e levantando pontas para a compreensão da sua evolução. Das conversas com jogadores e treinadores aos apontamentos desse livro seminal que é “A Tribo do Futebol”, de Desmond Morris, de tudo um pouco vamos percebendo através da escrita acessível (mesmo para quem não pesca nada de futebol) de quem sabe do que fala e que nela coloca a emotividade das mais esplêndidas vivências. É através dela que vemos um menino de botas ortopédicas com um ferro até ao joelho, sentado no banco dos suplentes do Famalicão, à conversa com o Sr. João, o massagista do Vila Nova. Naquela conversa, Jorge Reis-Sá soube o maior segredo da família. Como sabe, ainda hoje, que a vida é um desastre à espera de acontecer. Ou que os odores do éter, misturados com o da relva, cheiram a infância.

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