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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

TEATRO: "Casa de Bonecas"



TEATRO: “Casa de Bonecas”,
Texto | Henrik Ibsen
Adaptação, encenação, espaço cénico, desenho de luz e de som | Pedro Damião
Direcção de cena | Miguel Duarte e Artur Leite
Guarda-roupa | Isilda Margarida e Daniela Fula
Interpretação | Iara Duarte, Luís Ribeiro, Inês Costeira, João Martins, Andreia Lopes, António Ferreira
Produção | Contacto - Companhia de Teatro Água Corrente de Ovar
Casa da Contacto - Auditório Manuel Ramos Costa
11 Jan 2025 | sab | 21:45


“Casa de Bonecas”, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, desenvolve a sua acção na conservadora Noruega de finais do século XIX. No cerne da trama está o casal Nora e Torvald Helmer e um empréstimo que a mulher terá contraído de forma ilegal para custear as despesas com a recuperação do marido quando este se encontrava gravemente doente. Alguns anos mais tarde, com Torvald restabelecido e a celebrar a sua promoção a director do Banco onde trabalha, Nora é assediada por Krogstad, o homem que lhe emprestou o dinheiro, também ele funcionário do banco e que acaba de ser despedido por Torvald. Cedendo à chantagem, Nora irá desenvolver os maiores esforços junto do marido no sentido de reverter a situação de Krogstad, mas sem sucesso. Torvald acabará por descobrir o crime de Nora, voltando-se contra a esposa e responsabilizando-a pela sua iminente perda de honra. Mas assim que percebe que Krogstad não pretende seguir em frente com as suas ameaças, antes deixar a situação cair no esquecimento sem consequências para nenhuma das partes, procura agir como se nada tivesse acontecido. Tarde de mais, visto que o seu comportamento elucida Nora em relação à vida que tem vivido e ao seu papel como mãe e esposa, mas sobretudo enquanto pessoa.

Encenada pela primeira vez em 1879, “Casa de Bonecas” dividiu opiniões, extremou posições e causou um rebuliço tão grande que a polémica estendeu-se além fronteiras, sendo considerada pelos críticos como “um esgoto a céu aberto” e proibida durante décadas em vários países por “atentado à moral”. Foram muitos aqueles que a saudaram pela inovação e pertinência, mas muitos mais os que a acharam perturbadora da moral e dos bons costumes, ciosos das convenções que ditavam o papel da mulher no seio da família. Numa altura em que os movimentos de emancipação feminina buscavam afirmar-se na Europa e no Novo Mundo, a peça foi considerada como dotada de um pendor revolucionário e teve repercussões relevantes nesse âmbito. Quem não a apreciou de todo foi a sociedade conservadora da época, que não se cansou de exprimir a sua revolta contra a personagem Nora, sobretudo devido ao final da peça. Esse final, aliás, foi tão controverso que Ibsen se viu na obrigação de ter de escrever um final alternativo, sob pena de alguém o vir a fazer por ele. Actualmente, “Casa de Bonecas” é uma das peças mais representadas em todo o mundo e não há encenador que não adopte o texto original, aquele que inaugura o teatro moderno e que faz de Ibsen o pioneiro da prosa dramática e realista.

O tempo passou, vivemos hoje numa outra sociedade e ganhámos muita coisa. As mulheres – neste caso em particular – deixaram de ser senhoras de alguém para se afirmarem como seres humanos plenos de direitos e de deveres como qualquer pessoa. Mas será bem assim? As notícias nos jornais e os relatórios que constantemente são divulgados estão aí para o desmentir, mostrando um aumento contínuo de casos de violência de género e o consequente crescimento da nossa inquietação, dor e revolta. O número de mulheres assassinadas pelos maridos e companheiros, o número de mulheres assediadas, abusadas e violadas, o número, sobretudo, de jovens mulheres que se submetem a uma violência constante, física ou psicológica, por parte de jovens namorados não pára de aumentar. Esta é uma realidade que não podemos ignorar e para a qual, de certa maneira, esta versão do texto procura alertar, não numa adaptação da realidade do séc. XIX para o séc. XXI, mas numa estrutura linguística que oscila entre alguns maneirismos novecentistas e uma coloquialidade tão própria do nosso tempo. Acima de tudo, o que Ibsen parece pedir é que percebamos que esta não é “a casa de bonecas” ou “a casa da boneca”, antes “uma casa de bonecas”. Uma de muitas.

Em boa hora Pedro Damião e a Contacto pegaram em “Casa de Bonecas”, estreando com ela a 82ª produção de uma longa e bonita história de mais de quatro décadas de amor ao teatro. Fê-lo numa hora particularmente dolorosa, com o desaparecimento precoce de Manuel Ramos Costa, associado fundador número 1 da Contacto e um homem que à instituição devotou toda a sua vida, ajudando a elevar a Companhia a um lugar cimeiro no Teatro em Portugal. Em condições muito difíceis para actores e público - o ruído que se projectou do exterior perturbou significativamente o normal desenrolar da peça -, foi emocionante ver como os vários papéis foram defendidos, particularmente o de Nora, assumido pela jovem actriz Iara Duarte, brilhante na réplica final, quando solta um inaugural grito feminista, abandonando a casa, o marido e os filhos. O desenho de luz que retém Nora na sombra ou o lugar que ocupa no centro da sala e que a mantém de costas para o público, falam do quanto a sociedade procurava “esconder” o papel da mulher. Ao mesmo tempo, o colorido e geométrico vestido, inspirado na pintura de Mondrian, vem falar-nos de modernidade e de emancipação. Um belíssimo momento, numa casa que insiste em dar a ver teatro, que teima em acarinhá-lo, promovê-lo e levá-lo ao encontro dos mais variados públicos.

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