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sábado, 11 de janeiro de 2025

LIVRO: "O Livro Branco"



LIVRO: “O Livro Branco”,
de Han Kang
Título original | 흰, (© Han Kang, 2016)
Tradução | Maria do Carmo Figueira, a partir da tradução inglesa de Deborah Smith
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Junho de 2019 (3.ª edição, Novembro de 2024)


“A mulher de vinte e dois anos fica novamente sozinha em casa, ainda está deitada. É sábado de manhã e, com a primeira geada ainda colada às ervas, o marido, de vinte e cinco anos, sobe a montanha com uma pá para enterrar a bebé que nasceu ontem. A mulher não consegue abrir bem os olhos inchados, por mais que tente. Não há articulação nenhuma no corpo todo que não lhe doa, e os nós dos dedos inchados pulsam de sofrimento. E é então que, pela primeira vez desde o parto, sente algum calor inundar-lhe o peito. Senta-se e aperta desajeitadamente o seio. Primeiro, uma gotas aguadas, amareladas, depois um fio contínuo de leite branco.”

O branco de um cobertor de bebé, da espuma das ondas, do sal ou da neve, de um grão de arroz ou de um torrão de açúcar. O branco da lua, da flor da magnólia, das penas de um papagaio, dos cabelos de uma idosa, de uma folha de papel. O branco de umas fraldas ou de uma mortalha. Tendo a cor branca como denominador comum de um conjunto de objectos ou de imagens, Han Kang constrói um livro a partir das memórias íntimas de uma infância passada na ilha de Jeju, na longínqua Coreia do Sul, cruzando-as com um quotidiano bem diferente, em Varsóvia, onde se refugiou temporariamente para escrever um romance. Em torno de um acontecimento trágico - o nascimento e morte da sua irmã mais velha -, a autora tece algumas breves reflexões entre o “eu” e o “ela”, fazendo do processo de escrita um meio para exprimir as suas dúvidas e inquietações, transformando a dor em promessa e, no limite, libertando-se da “maldição” daquilo que é e do que poderia ter sido, fazendo enfim o luto.

“A cada item que colocava na lista invadia-me um estremecimento, uma agitação. E senti que, sim, precisava de escrever este livro, e que o processo de escrita iria ser regenerador, tornando-se com o tempo algo parecido com uma pomada branca espalhada sobre um inchaço, ou com gaze protegendo uma ferida. Com uma coisa que eu precisava.” Numa escrita feita de serenidade e doçura, empática e fortemente poética, Han Kang traz de volta à vida esta “onni” (“irmã mais velha” em coreano), imaginando-a a pôr o casaco pelos ombros e a ir à farmácia quando a mãe de ambas estivesse doente, a pôr o dedo à frente dos lábios pedindo-lhe que não fizesse barulho, a escrever equações no livro de exercícios de matemática para que praticasse, a tirar-lhe uma farpa espetada no pé, usando uma agulha que esterilizaria na chama do bico do fogão. Uma “onni” cuja história é também a história de Han Kang, de como nasceu e cresceu no lugar dessa morte, de como olha o mundo através dos seus olhos.

Depois do extraordinário “Atos Humanos”, a minha admiração por Han Kang e pela sua escrita sai reforçada com este “O Livro Branco”. Uma escrita biselada como um pingente de gelo, suave como um campo coberto por um manto branco depois das primeiras neves a anunciar o Inverno, aconchegante como uma colcha de lã imaculadamente branca, da cor da paz. Uma escrita que, em si mesma, carrega todas as cores, dedilhando as cordas dos sentidos de cada leitor através de reflexões profundamente comoventes, delicadas e puras. No final, vemos como a autora constrói uma espessa e complexa mortalha de palavras, com a qual cobre a sua “onni”. Pode, enfim, aceitar a sua partida e despedir-se, mergulhando o olhar apaziguado no frio da meia-lua que se ergue ao início da tarde, no silêncio de uma floresta de bétulas brancas, na quietude da janela por onde entra o sol de inverno, nas partículas brilhantes de pó agitando-se nos feixes de luz que se prolongam obliquamente até ao tecto. “Dentro desse branco, de todas essas coisas brancas, sorverei o último sopro de ar que exalaste.”

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