Páginas

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

LIVRO: “Toda a Gente Tem um Plano”



LIVRO: “Toda a Gente Tem um Plano”,
de Bruno Vieira Amaral
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Novembro de 2024


“Um dia, o professor Pretérito Perfeito cismou com ele, como se nunca o tivesse visto antes, nem se tivesse sequer apercebido da existência daquele rapaz, perdido que geralmente estava nos seus pensamentos, planos e projetos. Quem era mesmo o miúdo? Ah, filho da Alda. Não estava a ver quem era, mas pronto. Um interessante fenómeno sociológico, deveras. Caso para ser acompanhado de perto, estudado. Que destino teria, criado sem pai nem mãe? A tia, sim, que não era tia, não é a mesma coisa. Tinha essa impressão, embora carecesse de confirmação científica. Estudos. Opinião é como o sim-senhor, não é? Toda a gente tem. Mas o saber é para quem estuda. E era necessário estudar os efeitos de uma criação de tal sorte.”

Àquela hora da manhã, as árvores da Avenida da Praia assistem à romaria de fantasmas que arrastam o peso da rotina. Do outro lado do rio, a grande cidade com as suas luzes. Deste lado, paralíticos e cancerosos colostomizados, velhos a falar sozinhos e deprimidos sem dinheiro para aviar a receita de Xanax, ciganos e antigos combatentes da Guerra Colonial “onde perderam pernas, braços e juízo (e ganharam uma reforma de merda e ódio aos turras)”. Entre eles está Carlos, aliás Calita, também ele com ar de suicida, “de quem está no limite e se prepara para dar o último passo rumo a um abismo maior, mais profundo do que o braço de rio que se estende à sua frente”. As próximas duzentas páginas do livro irão mostrar-nos de que massa é feito este Calita, falar-nos das circunstâncias em que conheceu a própria mãe, levá-lo nessa longa jornada que começa nas ruas de Lisboa, passa por um reformatório da Guarda e pelas noites de Benidorm, até terminar nas afueras de Madrid. E trazê-lo de volta à realidade do bairro e ao mundo cinzento que é de novo o seu.

Depois da estreia fulgurante com “As Primeiras Coisas” - que viria a valer-lhe o Prémio Literário José Saramago -, e desse extraordinário “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”, Bruno Vieira Amaral está de regresso ao romance, após sete anos de interregno, com “Toda a Gente Tem um Plano”. Comprometido com as geografias da margem sul - do pontão de Alcochete às salinas de Alhos Vedros, da praia do Rosarinho ao mercado do Lavradio e às moradias do bairro Alentejano, do bairro Gouveia e das Arroteias -, o autor volta às lugares da infância para compor uma ópera trágica à volta de Calita e da sua inaptidão para segurar a felicidade possível que se apresenta ao alcance das mãos. Numa escrita que cruza as memórias de quem vive e sente um tecido social feito de ricos, remediados e pobres, Bruno Vieira Amaral lança um olhar lúcido sobre a vida na margem (e à margem) da capital, pontuado de humor e de uma fina ironia. Na ténue linha que separa uma vida honesta da marginalidade, Calita toca profundamente o leitor pela vontade em regressar aos lugares onde foi feliz, sistematicamente contrariada por uma vida cujas oportunidades são só para alguns.

Admirador confesso da escrita de Bruno Vieira Amaral, seja ela romance ou conto, crónica ou ensaio - e abro aqui um parêntesis para lembrar o excelente “Aleluia!”, um dos “retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, cujos ambientes e personagens estão na base de algumas das mais interessantes passagens de “Toda a Gente Tem um Plano” -, é com emoção que abraço este livro. Através dele revejo as bandeiras de Angola e Cabo Verde que ondulam no cimo de algumas barracas, “como que para sinalizar um território e um orgulho estranhos”, mas também a força de figuras como a Tia Lena ou D. Palmira, o professor Pretérito Perfeito ou D. Pacas, o “sete-vidas”, Rosa Quivunge e Zé Lorde, Canivete e o bando dos Carecas. Entretanto, o bairro torna-se permeável a quem, de longe, traz consigo mensagens de esperança e salvação, o rebanho submisso do pastor Joãozinho de Sousa a crescer a cada dia sob o olhar atento de Pula-Pula. A par de um conjunto de belíssimas obras surgidos neste final de 2024 - e em contraciclo com um ano medíocre (ressaca da pandemia?) -, “Toda a Gente Tem um Plano” é um exemplo acabado do quanto a literatura nos pode inquietar, convocando um renovado olhar sobre as contradições das sociedades em que vivemos.

Sem comentários:

Enviar um comentário