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quarta-feira, 31 de julho de 2024

LIVRO: "Os Anos"



LIVRO: “Os Anos”,
de Annie Ernaux
Título original | “Les Années” (© Editions Gallimard, 2008)
Tradução | Maria Etelvina Santos
Ed. Livros do Brasil, Fevereiro de 2020 (reimpresso em Fevereiro de 2023)


“A fotografia a preto e branco de uma rapariguinha em fato de banho escuro, numa praia com rochas. Ao fundo, falésias. Está sentada numa rocha lisa, as pernas fortes bem esticadas para a frente, os braços apoiados na rocha, os olhos fechados, a cabeça ligeiramente inclinada, a sorrir. Uma trança castanha grossa puxada para a frente, a outra caída nas costas. Tudo indica um desejo de posar como as estrelas do Cinémonde ou na publicidade do Ambre Solaire, de escapar ao seu corpo simples e insignificante de rapariguinha. As coxas, mais claras, tal como os antebraços, deixam adivinhar o desenho do vestido e revelam o carácter de exceção que, para aquela criança, representam umas férias ou uma ida até ao mar. A praia está deserta. No verso: agosto 1949, Sotteville-sur-Mer.”

Pela emoção que dele se desprende, pela sua rara sensibilidade e pela escrita límpida e objectiva, devo confessar que “Os Anos” me tocou muito particularmente. Narrativa autobiográfica, vista por Annie Ernaux como “uma espécie de destino de mulher”, a obra debruça-se sobre um período que vai de 1941 a 2006, procurando abraçar as múltiplas facetas da realidade e organizar uma memória vasta de acontecimentos acumulados, de assuntos vários e insignificantes, de mil jornadas empreendidas ao longo de seis décadas e meia de uma vida plena. Rejeitando tentações narcisistas, de um pudor sem limites, “Os Anos” é um fresco vivo e imenso, desdobrado a partir de um breve conjunto de imagens, que a autora faz questão de detalhar na terceira pessoa, procurando distanciar-se de qualquer ideia de intimidade. Um desdobramento que não se limita à esfera pessoal, antes engloba a História da própria França e do Mundo em geral, desde a II Guerra Mundial até ao início do presente século.

“Existir é beber não porque se tenha sede”. Tudo começa com a fotografia de “um bebé gordo, com boca de quem está a fazer birra, cabelo castanho a formar um caracol no alto da cabeça, sentado meio nu sobre uma almofada em cima de uma mesa de madeira trabalhada”. A imagem “deve datar de 1941”, o que remete de imediato para um tempo de fome e de medo, Pétain encolhendo os ombros face à ocupação nazi, comboios para Auschwitz, o gueto de Varsóvia, Le Havre arrasado, 10 000 graus em Hiroshima. Até ao final do livro, as pequenas histórias cruzar-se-ão com o grande acontecimento, num convite ao leitor a desfrutar da memória colectiva e a perceber nela ecos da sua própria história. Ao desastre, ao êxodo e à ocupação, seguir-se-á a libertação. Habitar uma casa térrea, usar galochas, brincar com uma boneca de trapos, lavar a roupa com cinza de madeira ou prender à camisa das crianças, perto do umbigo, um saquinho de tecido com dentes de alho para afastar as lombrigas, dará lugar a comer carne vermelha e laranjas, ter segurança social, abono de família, reforma aos sessenta e cinco anos e ir de férias.

Dos filmes às canções, dos anúncios à política, dos avanços tecnológicos aos acontecimentos que abalaram o mundo, sem esquecer as tendências da moda, a pílula contraceptiva ou as emoções da Volta à França em bicicleta, de tudo um pouco se “escreve” um livro apurado ao detalhe, passado pelo crivo da memória da autora, que não esquece a condição de ser mulher e de esquerda. Tudo isto ritmado pelas refeições de família ou de amigos, das conversas à mesa que fazem eco da mudança de tempos e vontades. E assim, no curto espaço de pouco mais de meio século, a sociedade patriarcal cede à liberalização da moral e dos costumes, o pleno emprego verte-se em precariedade, a escassez de bens dá lugar à sociedade de consumo, o pequeno comércio é “abafado” pelas grandes superfícies e a esperança num mundo melhor soçobra ante a ameaça do terrorismo. Um livro nostálgico, amargo e doce ao mesmo tempo, subjugado por essa verdade maior inscrita logo no seu início: “Todas as imagens irão desaparecer.”

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