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domingo, 14 de julho de 2024

CONCERTO: "Mongrel" | Mário Laginha Trio e Vasco Dantas



CONCERTO: "Mongrel"
Mário Laginha Trio e Vasco Dantas
Cistermusica - 32º Festival de Música de Alcobaça 2024
Mosteiro de Alcobaça - Claustro D. Dinis
13 Jul 2024 | sab | 21:30


Há mais de três décadas - e sob o lema “Um clássico para todos” - que o Cistermúsica – Festival de Música de Alcobaça vem acolhendo públicos particularmente ligados à música erudita, sem deixar de “piscar o olho” a outros géneros musicais que dela derivam. Mas não terão sido muitas as vezes que, como ontem, a música clássica e, neste caso, o jazz, tão irmanados estiveram num programa de um concerto, colocando lado a lado o piano de Vasco Dantas, numa interpretação imaculada de algumas das mais emblemáticas peças de Chopin, e o trio de Mário Laginha, apostado num exercício de reformulação do compositor clássico, com recurso à improvisação. Entre o surpreendente e o fascinante, o programa mostrou o quão ampla pode ser a abertura aos clássicos, sem que daí advenha qualquer desvirtuamento da grande música. Rejeitando a colagem aos originais de músicos consagrados, embrulhados em roupagens “jazzísticas” ou “pop” que brotam espontaneamente com inusitada frequência, Mário Laginha soube criar espaço para a improvisação numa arrojada aproximação ao universo musical de Chopin, daí resultando “Mongrel”, álbum de 2010 agora revisitado e mostrado ontem ao público, numa noite única no Claustro D. Dinis do Mosteiro de Alcobaça.

Embora a fonte que inspirou “Mongrel” permaneça reconhecível e claramente identificada nos nomes das cinco propostas musicais do concerto, Mário Laginha é claro ao explicitar a forma como se inspirou e transformou a música do compositor polaco, definindo-a como “uma espécie de heresia a transbordar respeito pelo compositor”. São suas as seguintes palavras: “Enquanto procurava escolher as peças de Chopin sobre as quais trabalhar, fui relembrando que a profusão de melodias e a riqueza harmónica são uma constante em toda a sua música. No Scherzo, na Balada, na Fantasia e até nos Nocturnos, só utilizei parte dessas melodias (por vezes uma só). Tomei muitas liberdades. Mudei compassos, tempos, modifiquei algumas harmonias - até mesmo melodias - criei espaço para a improvisação, enfim, nunca me abstive de alterar aquilo que me pareceu necessário para aproximar a música de Chopin do meu universo musical. (…) Quis deixar reconhecível a fonte musical, mas fiz os possíveis por não ter uma deferência tal que me inibisse de transformar o que quer que fosse. Este concerto é uma espécie de heresia a transbordar respeito pelo compositor. E parece-me quase um dever homenagear um dos maiores improvisadores de todos os tempos com uma música que tem na sua matriz a improvisação.”

“Prelude” foi a primeira peça a ser interpretada, com Vasco Dantas a acentuar o dramatismo que a enforma e a colocar a fasquia muito alta no momento de “passar a bola” para o trio. Se comparada com as seguintes, a abordagem ao tema de Mário Laginha e seus pares - Bernardo Moreira no contrabaixo e Alexandre Frazão na bateria - foi bastante “soft”, com alguns apontamentos subtis a darem o tom de um lamento, próximo, se assim o quisermos, da matriz do fado. A “Valsa” foi a segunda peça a ser tocada e, aqui sim, as diferenças surgiram de forma evidente. Até porque Laginha fez tábua rasa do tempo “três por quatro” próprio da Valsa e avançou por caminhos tão misteriosos quanto inóspitos, que acabaram por desaguar nessa inexpugnável praça-forte à qual damos o nome de “rock” (admirável Alexandre Frazão na forma como fez crescer a música). Os dois “Noturnos” foram peças de “demarcação de território”, a afirmação da música e erudita e do jazz naquilo que os afasta ou os pode tornar próximos. Finalmente, a “Balada” foi um momento arrepiante de virtuosismo e classe interpretativa de Vasco Dantas, para o qual a resposta de Mário Laginha, por excepcional que pudesse ser, ficaria sempre aquém. O “encore” trouxe essa enorme surpresa de vermos Vasco Dantas a lançar o repto ao trio na forma da “Fantasia e Variações sobre o Carnaval de Veneza”, de Jean-Baptiste Arban. Um “chapéu de três bicos” que Laginha, Moreira e Frazão souberam envergar com elegância, pondo uma nota de boa disposição e humor no final de um inesquecível serão.

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