LIVRO: “Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 anos depois”,
de Joana Bértholo
Ed. Editorial Caminho, Maio de 2024
“Augusta, incrédula, não sabia se achava a história magnífica ou péssima. Quão aleatório pode ser isto do amor? Repetiu o nome: ‘Alberto Luís Alberto Luís Alberto Luís Alberto…’, como se a tentar perceber a origem do encantamento, a resolução desta charada. Como se a tentar perceber.”
Fevereiro de 1944. Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa, jovem de 22 anos a caminho de se tornar Agustina Bessa-Luís e de assinar algumas das obras mais marcantes da literatura portuguesa contemporânea, colocou um anúncio na secção “Diversos”, d’ O Primeiro de Janeiro. Nele podia ler-se: “JOVEM INSTRUÍDA desej. corresp. c/ pessoa intelig. e culta. Resp. admin. N.º 61”. O que buscava Maria Agustina? O objectivo de um acto considerado “ousado e irreverente” – como o classifica Isabel Rio Novo, na extraordinária biografia de Agustina intitulada “O Poço e a Estrada” (Ed. Contraponto, Fevereiro de 2019) –, teria a ver apenas com aquilo que a própria escritora designou como “um desejo literário”? Quem respondeu ao anúncio, foi isso que entendeu. “O anúncio foi lido por um rapaz em Coimbra. Parece que ele enviou um desenho. Ela respondeu. Trocaram correspondência. Casaram e ficaram juntos o resto da vida. Setenta e dois anos e uma filha.”
Convidada a explorar a Póvoa de Agustina, no âmbito da iniciativa “Residência de um Dia” promovida pelo Festival Correntes d’Escritas 2023, Joana Bértholo parte deste “evento quase anedótico” da biografia da escritora para se interrogar sobre as relações interpessoais nos dias de hoje. Em forma de novela, “Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 anos depois” conta-nos a história de Augusta, poveira, hoje com 22 anos – os mesmos que Agustina tinha quando colocou o referido anúncio –, para quem likes, mensagens abreviadas e emojis são linguagem corrente e se sente segura “de dominar o meio, as dinâmicas, as armadilhas e os pontos-cegos” do mundo virtual. Só que não, e o relacionamento de quatro anos com Tó resultou em desgosto amoroso que a envergonhou e revoltou. É Raquel, uma amiga, que lhe fala de Agustina e lhe dá conta do anúncio. Decide, então, passar do “online” ao “offline” e fazer como Agustina. Os problemas, porém, surgem logo no texto do anúncio, com a palavra “instruída”.
Ao longo de uma centena de páginas, o leitor é convidado a acompanhar as dúvidas que assaltam Augusta e as dificuldades em levar por diante o seu projecto. O interesse pelos códigos de comunicação de outros tempos cresce, como cresce a percepção do quão difícil pode ser, nos dias de hoje, a publicação de um anúncio daquele género num jornal. Entre o fascínio e o dilema, Augusta dá-se conta “que uma jovem rapariga solteira, há oitenta anos, se sentiria porventura mais vulnerável ao colocar um anúncio deste tipo num jornal do que ela hoje a publicar uma selfie insinuante e cheia de filtros junto a centenas de outras raparigas similarmente retocadas.” Num todo engenhoso, Joana Bértholo leva-nos a viver uma quase “experiência científica”, cujo resultado, tocado pela imprevisibilidade, é revelador de estigmas que persistem, de manipulação e falsidade, de jogos viciados à partida. As imagens de duas páginas com o mesmo anúncio, separadas oitenta anos entre si, não poderiam ser mais eloquentes.
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