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domingo, 5 de maio de 2024

CINEMA: "Pequenas Cartas Malvadas"



CINEMA: “Pequenas Cartas Malvadas” / “Wicked Little Letters”
Realização | Thea Sherrock
Argumento | Jonny Sweet
Fotografia | Ben Davis
Montagem | Melanie Oliver
Interpretação | Jessie Buckley, Olivia Colman, Timothy Spall, Gemma Jones, Malachi Kirby, Alisha Weir, Anjana Vsan, Hugh Skinner, Edward Judge, Michael O’Connor, Antony Somers, Paul Chahidi, Tim McMullan, Lolly Adefope, Eileen Atkins, Joanna Scanlan
Produção | Graham Broadbent, Olivia Colman, Peter Czernin, Ed Sinclair, Jo Wallett
2023 | Reino Unido | Comédia, Crime, Drama | 100 Minutos | Maiores de 14 anos
UCI Arrábida 20 - Sala 18
04 Mai 2024 | sab | 19:05


Sob a capa do anonimato, alguém parece divertir-se a insultar os habitantes de Littlehampton, pequena vila costeira do Reino Unido. Edith Swan, uma solteirona e cristã devota que vive em casa dos pais, é a primeira vítima. Cheia de insultos e palavrões, as cartas ofendem-na e deixam o pai lívido de raiva, pelo que decidem entregar o caso à polícia. Rose Gooding, a vizinha do lado, é a principal suspeita. Viúva de guerra, irlandesa de gema, pragueja como um marinheiro embriagado e é conhecida por não ter papas na língua. É isso que faz quando conhece o teor da acusação e é presa pela polícia, apesar da fragilidade das provas que pendem contra ela e da sua tenaz afirmação de inocência. A única pessoa que acredita na sua inocência é Gladys Moss, a mulher polícia da cidade, mas nos anos 20 do século passado e num sistema ultra-conservador, as mulheres não devem intrometer-se na investigação de casos do género. Mesmo assim, e contrariando as ordens do seu chefe, Gladys decide agir por conta própria, acabando por apanhar o autor das missivas com a boca na botija.

Dividida entre drama e comédia, “Pequenas Cartas Malvadas” encontra nesta indefinição o seu ponto fraco. As sucessivas camadas do filme vão deixando a descoberto a atmosfera social de finais do primeiro quartel do século XX, numa Inglaterra muito marcada pelo recente conflito mundial que levou à morte de quase um milhão dos seus filhos. Exacerbados, os valores remanescentes da era vitoriana fazem-se notar no preconceito de género e na forma como a mulher é discriminada, o valor dos lugares que ocupa na sociedade minimizados, os seus esforços na luta pela igualdade de direitos abafados. Cabem aqui as referências ao sufragismo ou a proibição das mulheres polícias de casarem ou terem filhos (o pai de Edith chega a comparar Gladys a “um porco com asas”), a forma como são olhados os vizinhos irlandeses, a bitola moral aferida pela assiduidade na igreja. Em contraponto a este lado mais sério, temos as cartas com a sua linguagem ordinária, as suspeitas que a sua origem levanta, a coscuvilhice que despoletam. Se o tom de denúncia queda demasiado simplista, a nota de comédia também não vai além das intenções, pelo menos a julgar pelo escasso número de gargalhadas que se fazem ouvir na sala ao longo de cem minutos de filme.

Sincero na sua mensagem, o filme expõe os danos óbvios causados às vítimas desta forma de “bullying”, mas também o quão tristes e patéticas podem ser as vidas dos autores das cartas para se darem ao trabalho de fazerem o que fazem, sobretudo não tendo a coragem de expressar na cara dos visados o que lhes vai na alma. Baseado numa história verídica, o filme conta com desempenhos excelentes. Colman é perfeita no papel de Edith, conseguindo captar o horror que muitas pessoas religiosas demonstram ao ouvir conversas sobre sexo ou profanação. À medida que a história avança, o seu papel aprofunda-se, revelando camadas da personagem que inicialmente não sabíamos que existiam. Buckley é igualmente excelente no papel de Rose, uma mulher combativa e turbulenta em quem se acredita quando diz que dispensaria o trabalho de escrever uma carta se tivesse algo a dizer a alguém. O final pode ter um sabor fantasioso ou aligeirado, mas Colman, uma vez mais, redime as imperfeições do filme com uma gargalhada libertadora, onde se abriga a raiva e a dor de toda uma vida.

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