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sexta-feira, 26 de abril de 2024

TEATRO: "Fado Alexandrino"



TEATRO: “Fado Alexandrino”
Texto | António Lobo Antunes
Encenação, adaptação cénica e dramaturgia | Nuno Cardoso
Cenografia | F. Ribeiro
Música | Pedro “Peixe” Cardoso
Figurinos | Nélson Vieira
Interpretação | Ana Brandão, António Afonso Parra, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias, Roldy Harris, Sérgio Sá Cunha, Telma Cardoso
Produção | Teatro Nacional de São João
240 Minutos | Maiores de 16 anos
Teatro Nacional de São João
21 Abr 2024 | dom | 16:00


“Estou em Lisboa e em Moçambique, vejo ao mesmo tempo os jardinzitos gotosos e as palhotas devastadas pelas metralhadoras”. Em “Fado Alexandrino”, António Lobo Antunes mergulha-nos num tempo compósito, accionado pelo movimento da rememoração. Cinco personagens, militares que regressaram da guerra em África dez anos antes, juntam-se num jantar, um encontro de reflexões sobre um fim e o seu luto, uma espécie de Última Ceia. Nuno Cardoso leva à cena aquele que é considerado o grande romance sobre o 25 de Abril, na celebração do seu cinquentenário. O palco devém um imenso mural, que confere matéria, pela presença e contracena dos actores, pelo trabalho dos criativos, às vivências das personagens em quatro tempos que se interpenetram: o Estado Novo, a memória da guerra colonial em Moçambique, a Revolução dos Cravos, o pós-Revolução. História com histórias dentro, Fado Alexandrino é uma alegoria sobre o fado de ser português.

Não li “Fado Alexandrino”, mas creio ter lido o suficiente de António Lobo Antunes para poder afirmar, com enorme certeza, que o respeito pelo texto foi uma das grandes preocupações de Nuno Cardoso, a ela acrescentando, na adaptação cénica como na dramaturgia, uma fidelidade absoluta ao pensamento do escritor. Encontramos na peça a mesma ausência de linearidade discursiva, a decomposição da palavra, a polifonia, a narrativa metaficcional, as metáforas e hipérboles sempre presentes ou a forma como Lobo Antunes se repete, enquanto marcas distintivas de um pensamento delirante e imagético, capaz de repelir o leitor com a mesma força que o atrai. É todo este mundo, fechado sobre si mesmo, claustrofóbico, obsessivo, labiríntico, paranóico, um mundo onde as personagens se sobrepõem e misturam o passado com a realidade, a memória com o presente, que se abre ao espectador em quatro horas de fúria e desejo, raiva e terror, desprezo e paixão, dor e morte.

Quatro horas. Leram bem. Quatro horas de uma exigência brutal, tanto para o público, que percebe de imediato estar perante um exercício de teatro invulgar e a cujo envolvimento não conseguirá escapar, quanto para os actores, quase ínfimos face ao “Adamastor” físico e psicológico que têm à sua frente, comoventes na sua coragem, na sua bravura, de aceitarem ser cartas de um baralho destinadas a serem mil vezes embaralhadas, partidas e tornadas a dar. É duma extraordinária peça de teatro que falo, já se percebeu. Absorvente, provocante, não pega no espectador pela mão e passeia com ele por um qualquer jardim zoológico, antes o agarra pelas tripas, obrigando-o a sentir o cheiro do medo, a provar o gosto do sangue, a olhar de frente o pesadelo da guerra, a pesar, uma a uma, as letras com que se escreve a palavra morte. Peça de teatro total, “Fado Alexandrino” mistura, sem meias palavras, o trágico e o cómico, colocando-nos perante o abismo da ausência e o fantasma do horror e mostrando-nos as almas que se esgotam lentamente até ao vazio absoluto. Uma extraordinária forma de festejar os 50 anos do 25 de Abril, neste país que fomos, neste país que somos.

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