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sábado, 16 de março de 2024

TEATRO: "A Farsa de Inês Pereira"

 

TEATRO: “A Farsa de Inês Pereira”
Texto e encenação | Pedro Penim, a partir de Gil Vicente
Cenografia e adereços | Joana Sousa
Figurinos | Béhen
Interpretação | Ana Tang, Bernardo de Lacerda, David Costa, Hugo Van Der Ding, João Abreu, Rita Blanco, Sandro Feliciano
Produção | Teatro Nacional D. Maria II
100 Minutos | Maiores de 14 Anos
Teatro Carlos Alberto
15 Mar 2024 | sex | 15:00


Há algo que interessa a Pedro Penim, no teatro e em tudo aquilo que se propõe fazer e que tem a ver com a ideia de nuance, ou seja, “complexificar as situações para humanizar as personagens, (…) permitindo‑lhes expor ideias difíceis de julgar, até do ponto de vista ético”. Quem o diz é o próprio, acrescentando: “Quando se fala da abolição da família ou do trabalho, há questões éticas e práticas que entram em linha de conta, e estas personagens são colocadas nesse sítio mais nebuloso em que a própria convicção oscila”. No caso concreto desta peça, aquilo que temos é uma Inês “muito ciente da falta de aplicabilidade do que propõe, mas [que] não deixa de jogar com esse facto e de torná‑lo muitas vezes uma questão lúdica, outras vezes destrutiva ou até auto-destrutiva”. Há aqui uma abertura que esta Inês encontra para o que chamaríamos um espaço de desaceleração, de falta de produtividade, com o propósito de contrariar as estruturas produtivas que nos empurram no sentido do auto-aperfeiçoamento, da melhoria da performance, da evolução rumo ao ganho.

Em linha com os seus mais recentes trabalhos – “Pais & Filhos” e “Casa Portuguesa” –, Pedro Penim volta a olhar as gerações abaixo da sua, “os millennials, a geração Z”, expondo aquilo que designa por “abismos intergeracionais”. Partindo do sofrimento histórico perante as estruturas hegemónicas e de como existem franjas importantes da população que foram martirizadas por esse poder principal, o encenador mantém a sua Inês Pereira nesse lugar de revolta que já está na peça do Gil Vicente, mas reserva-lhe um espaço mais íntimo, um espaço de liberdade onde possa sonhar com outras realidades e outros futuros: o seu quarto, a sua cama. Esse gesto, de acordo com Pedro Penim, “põe a Inês numa posição activista, mas um activismo que subverte a ideia imediata do que é ser activista. Ela encontra um caminho para concretizar essa revolta e foi surpreendente usá‑lo como tema principal: a passividade enquanto formato possível de luta.”

A personagem interpretada pela Rita Blanco recebe o mesmo tratamento que a Inês. Há uma tentativa de colocá‑la também num sítio de revolta – contra as instituições –, mas na perspetiva do trabalho, de sair para a rua, uma forma mais clássica de luta e activismo. Estas novas dimensões humanizam as personagens, o que faz com que a peça se situe em 1523, mas tenha os pés bem assentes no presente e um discurso claramente contemporâneo. As questões mercantilistas do século XVI estão distantes daquilo que vivemos hoje, mas, até como questão estética e poética, resulta muito bem o anacronismo de a peça se passar no século XVI e ser claramente vicentina, criando uma reação ora de distanciamento, ora de aproximação à personagem de Inês, “porque ela admite que não é no seu tempo de vida que poderá experienciar o mundo que idealiza, transportando essa ideia para 500 anos depois”. A Inês entra no campo da ficção científica, mas devolve‑nos a responsabilidade de sabermos que permanecemos num tempo e num lugar onde as relações com as estruturas de poder continuam a ser tensas e conflituosas.


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