LIVRO: “Revolução Inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril”,
de João Pedro Henriques
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2024
“Posto noutros termos: Se considerarmos momentos como o 5 de Outubro de 1910, o 28 de Maio de 1926 ou o 25 de Abril de 1974 como ruturas de significações e de estruturas sociais e políticas, é notável que o compadrio e as suas cunhas tenham permanecido razoavelmente imunes a essas alterações - mais democracia política e económica não parece ter resultado em menos compadrio ou em menos cunhas.”
Numa altura em que nos preparamos para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, um livro como “Revolução Inacabada. O que não mudou com o 25 de Abril” é precioso. Invertendo a natural tendência de elencar o que mudou com a revolução dos cravos, o que ganhámos em matéria de direitos, liberdades e garantias com o abraçar a democracia - “viajar livremente, reunirmo-nos livremente, beijarmo-nos em público, votar, expressarmo-nos livremente, ter acesso a um serviço universal de saúde” -, João Pedro Henriques obriga-nos a olhar os factos de um outro ângulo, a atentar no que não mudou, naquilo que está cristalizado nas relações pessoais e de poder e representa uma ferida aberta no nosso viver em sociedade. Para tal, coloca em cima da mesa dois assuntos prementes e que devem merecer a nossa maior atenção: o elitismo da classe governante e o insistente machismo que continua a marcar a relação da Justiça portuguesa com as mulheres, nomeadamente nos crimes de violência doméstica e nos crimes sexuais em geral.
Olhados em separado, os dois fenómenos são representativos “da profunda inércia na sociedade portuguesa”, perpetuando-se no tempo, “por mais que revoluções e golpes de Estado lhes abalem as fundações”. Ambos se alimentam da desigualdade e ambos contribuem para que essa mesma desigualdade se cave de forma mais profunda, seja de um ponto de vista social, no caso do elitismo, seja nas questões de género, no caso do machismo. “Assim continuará a ser enquanto a sociedade portuguesa não perceber, no seu conjunto, que desigualdade rima com indignidade”. Matérias como estas, escalpelizadas com a ajuda dos números e a contribuição de figuras ligadas à política, às ciências sociais ou à justiça, são de um valor inestimável. Quando, na ressaca duma noite eleitoral, assistimos com perplexidade à meteórica ascensão dos populistas de extrema-direita e constatamos que a liberdade e a democracia não são dados adquiridos, estas páginas representam um contributo importante para a compreensão daquilo que somos e para a forma como nos comportamos.
Apadrinhamento, patrocinato, clientilismo, protetorado, compadrio. À medida que as palavras vão desfilando e tomam o seu lugar na narrativa, vamos percebendo o quanto a tolerância face à desigualdade encerra em si a razão do(s) problema(s). Atentando nas questões ligadas à violência de género, vemos que a Justiça em Portugal foi “feita por homens, pendeu para o lado dos homens”, e que só 35 anos depois daquele “dia inicial inteiro e limpo” é que “emergimos da noite e do silêncio” aprovando no Parlamento (onde os homens nunca deixaram de ser maioritários) uma lei a consagrar a violência doméstica como categoria criminal. Entre o que é e o que parece - com alheiras de Mirandela ao barulho -, os factos vão sendo apresentados e o leque de temas vai-se ampliando, mostrando que há mais assuntos que não passaram do 24 de Abril, nomeadamente “o peso alucinante que os debates sobre futebol têm no espaço público”. À beirinha do fim, João Pedro Henriques deixa uma questão deveras pertinente: “Estará a política a futebolizar-se?”. E lembra que é desses debates televisivos que nasce para o espaço público o líder do partido que está a mostrar o quão pouco sólidas podem ser as fundações da nossa democracia.
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