CINEMA: “Quatro Filhas” / “Les Filles d’Olfa”
Realização | Kaouther Ben Hania
Argumento | Kaouther Ben Hania
Fotografia | Farouk Laâridh
Montagem | Qutaiba Barhamji
Interpretação | Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui, Nour Karoui, Ichrak Matar, Majd Mastoura, Hind Sabri, Zine El-Abidine Ben Ali
Produção | Nadim Cheikhrouha, Martin Hampel, Thanassis Karathanos
Tunísia, Alemanha, França, Arábia Saudita | 2023 | Documentário | 107 Minutos | Maiores de 12 anos
Cinema Trindade - Sala 1
13 Mar 2024 | qua | 16:00
Quando, no centro de Tunes, os ortodoxos salafistas clamam contra os inimigos do Islão e oferecem niqabs (véus que cobrem o rosto, deixando a descoberto apenas os olhos) às mulheres que os escutam, Ghofrane não hesita em aceitar um e vesti-lo. Mas aquilo que começou por ser quase uma brincadeira, depressa se revela o início de um processo de radicalização que culminará com a ligação desta rapariga de 16 anos ao Estado Islâmico, arrastando consigo a irmã Rahma, ligeiramente mais nova do que ela. As duas cumprem agora 16 anos de pena numa prisão da Líbia e a sua mãe, Olfa, clama nas televisões e nos jornais pela libertação das filhas, ao mesmo tempo que critica a inacção do governo tunisino quanto à extradição das filhas. A determinação e carisma desta mãe acabaram por captar a atenção de Kaouther Ben Hania, levando-a a partir para a realização de um documentário. O problema está em perceber onde se encontra a verdade de uma mulher que, envolta num grande sentimento de tragédia, desempenha um papel à medida do que dela espera um jornalista e não um cineasta.
Com Ghofrane e Rahma ausentes, a realizadora recorre a duas actrizes para reproduzir os sentimentos que atravessam uma família onde cabem, além de Olfa, Eya e Tayssir, as duas irmãs mais novas. Por outro lado, Olfa tem um “duplo”, uma terceira actriz que a substitui nos momentos de maior perturbação. É neste ambiente de documentário a roçar a ficção que decorre “Quatro Filhas”, um filme que escalpeliza a unidade familiar enquanto prova de experiência partilhada, revivendo um passado muito duro, dizendo o que nunca tinha sido dito, reabrindo feridas que se julgavam saradas e oferecendo-nos uma visão do que é ser mulher numa sociedade patriarcal e misógina. Aquilo que Kaouther Ben Hania tão bem faz é pegar nestas mulheres, alvo de uma educação em tudo semelhante, e mostrar que a transição para a maioridade pode acarretar profundas alterações nos vínculos familiares, pondo em causa dogmas sociais, educacionais, religiosos e políticos.
À medida que Olfa e as duas filhas mais novas desfiam memórias e recordam Ghofrane e Rhama, vão-se revelando os exactos pontos onde o ser mulher se encontra com as particularidades culturais em sociedades dominadas pelo fervor religioso e pelas restrições que daí advém. Neste exercício de dissecação das suas histórias e dos mundos que em torno de si foram construindo, salta para primeiro plano o desejo subconsciente de que todas as mulheres possam ser donas de si mesmas. A ligação entre mãe e filhas – actrizes e não actrizes – é feita à custa de um enorme investimento emocional, no reavivar de traumas como nas interrogações que mais não são do que formas disfarçadas de acusação. É neste momento que se impõe o olhar emocional de Kaouther Ben Hania, a justeza das suas conclusões, a forma como dispõem a narrativa em camadas e nos prova que o todo é muito mais do que a soma das partes. Entre o ajuste de contas e a catarse, “Quatro Filhas” é um documentário com uma enorme força e que importa ver com toda a atenção.
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