CINEMA: “A Flor do Buriti” / “Crowrã”
Realização | Renée Nader Messora, João Salaviza
Argumento | João Salaviza, Renée Nader Messora, Ilda Patpro Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô, Ihjãc Henrique Krahô
Fotografia | Renée Nader Messora
Montagem | Edgar Feldman
Interpretação | Francisco Hyjno Krahô, Ilda Patpro Krahô, Luzia Cruwakwyj Krahô, Solane Tehti Krahô, Raene Kôtô Krahô, Débora Sodré
Produção | Ricardo Alves Jr., Julia Alves, Renée Nader Messora, João Salaviza
Brasil, Portugal | 2023 | Drama | 123 Minutos | Maiores de 12 anos
Vida Ovar
23 Mar 2024 | sab | 12:50
A ameaça que pende sobre os índios da Amazónia teima em agudizar-se. O problema não é novo, mas agravou-se de forma brutal com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, em 2019. Esvaziando de poderes a FUNAI - Fundação Nacional do Índio, no que à jurisdição sobre a demarcação de territórios tradicionais diz respeito, o governo colocou em causa a sobrevivência de milhares de índios. Ao mesmo tempo, órgãos federais de proteção ambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, viram a sua acção enfraquecida graças a um conjunto de normativas governamentais, deixando as terras indígenas ainda mais vulneráveis à ocupação e à exploração ilegal de recursos (a extração de madeira, garimpo e caça e pesca ilegais, aumentaram 137% em 2020, em comparação com 2018). Daí que o Acampamento Terra Livre, evento que ocorre anualmente em Brasília no mês de Abril, tenha uma adesão cada vez maior por parte dos povos indígenas e a palavra de ordem seja: “Fora Bolsonaro!”
O ambiente é de tensão neste regresso de Renée Nader Messora e João Salaviza a Pedras Brancas e ao contacto com a comunidade Krahô, palco do seu anterior filme, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”. E se a primeira longa metragem da dupla tratava especificamente da luta de um jovem com o destino e a herança cultural, os realizadores abrem desta vez o olhar sobre oitenta anos de história Krahô, para mostrar como as ameaças do presente estão irrevogavelmente ligadas aos traumas significativos do passado que persistem bem vivos na memória. É neste ambiente tenso que acompanhamos Patpro e Hyjno nos seus preparativos para rumarem à capital federal do Brasil, entre os naturais receios pelo ambiente repressivo e hostil dos “cupés” (homens brancos) que irão encontrar, e a necessidade imperiosa de juntar a sua voz à de tantos outros índios na defesa dos seus direitos. Guardiões da turbulenta história dos seus povos, serão eles a guiar-nos pelos meandros da história, evocando os terríveis massacres na década de 1940 e lembrando que a luta prossegue nesse esforço de defesa das suas terras da contínua profanação.
O contraste entre um viver simples, no respeito pelos valores tradicionais e pela terra como um bem maior, e a ameaça sem rosto que teima em usurpar recursos e em ver no índio um alvo a abater, é mostrado com mão sensível mas firme. Num determinado momento do documentário, uma das mulheres da aldeia tenta explicar que “não se trata de luta por terra”, até porque ninguém ali a vê da mesma forma que o homem branco. “A terra é mais do que território... é corpo e vida”. Estabelecendo pontes entre aquilo que mostra e o tanto que apenas deixa adivinhar, “A Flor do Buriti” coloca a tónica de esperança do lado da consciencialização social, ambiental e política e mostra a importância da mobilização em tempos de resistência e luta. Mais do que um símbolo destes tempos de incerteza, o projecto de Messora e Salaviza é uma homenagem às vidas ceifadas precocemente e ao seu exemplo de coragem e resistência. Recuperar o passado e apontar caminhos de futuro, tal é o desígnio do filme. Futuro esse que pertence às gerações mais novas, a iniciar-se no que na vida há de mistério e emaravilhamento, escutando no primeiro choro de um recém-nascido a vontade de resistir e descobrindo o valor da luta no vermelho da flor do buriti.
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