Páginas

sábado, 17 de fevereiro de 2024

LIVRO: "A Zona Interdita"



LIVRO: “A Zona Interdita”,
de Mary Borden
Título original | “The Forbidden Zone” (© Patrick Aylmer, 1929, 2008, 2023)
Tradução | Eugénia Antunes
Ed. Minotauro, Setembro de 2023


“Não obstante, o Sol nasceu, dourando o avião, e este riu-se. Riu-se das feições convulsionadas da vila, da praia apinhada de bicheza, do magote de formigas-pessoas que se precipitava pelos portões da vila e enchia as estradas brancas; ria-se dos navios de guerra que abandonavam o porto, um por um, numa procissão solene, as bocas das suas armas escancaradas e sem serventia junto às amuradas. Com um derradeiro adejar das reluzentes asas, lançou-se-lhe qual seta em direcção ao solo, esquivando-se aos beijos dos estilhaços, seduzindo-os, metendo-se com eles, brincando com eles: depois, entregue a mensagem, terminada a brincadeira, subiu rumo ao brilho ofuscante do Sol e desapareceu. Um ponto no céu infinito, e a seguir nada - e a vila ficou em bolandas.”

“Zona interdita” era o nome dado pelo Exército francês à extensão de terreno imediatamente atrás da linha da frente durante a Primeira Guerra Mundial. É lá que vamos encontrar Mary Borden e o seu hospital militar de campanha, “transferido da Flandres para o Somme, depois para Champagne, e a seguir de volta para a Bélgica”, mas sempre dentro da zona interdita. Hospital, importa dizê-lo, custeado e dirigido por Borden, herdeira rica oriunda de Chicago, mulher de um missionário britânico, aspirante a escritora com três filhos pequenos, que se voluntarizou para a Cruz Vermelha francesa em 1914. É lá que a sua presença se cruza com a de milhares de feridos, muitos deles com extrema gravidade e que acabam por morrer. “Apesar disso, quatro em cada cinco das pessoas que conseguiam chegar ao hospital de Borden sobreviviam, estatística da qual ela se orgulhava. No entanto, as ironias inerentes à prática da enfermagem em tempo de guerra não deixavam de a perturbar profundamente. Os homens que recuperavam eram enviados de volta para os seus regimentos para tornarem a enfrentar a morte”, pode ler-se na Introdução, assinada por Hazel Hutchinson.

“Colectânea de fragmentos”, como é definido por Mary Borden, “A Zona Interdita” oferece um retrato expressivo do conflito naquilo que teve de mais violento e cruel, mas também de mais humano. Construído sobre pormenores de grande nitidez e precisão, é um livro poderoso, que realça a coragem e determinação do ser humano, ao mesmo tempo que lança um olhar profundamente irónico sobre a guerra e aqueles que a determinam. Leia-se “Bélgica”, o breve capítulo que abre o livro e veja-se o quartel-general do Exército belga, instalado numa aldeia acocorada na lama: A rua empedrada escorregadia, um gato ruivo sentado numa janela, soldados indolentes à mercê da chuva fina, o hino nacional que sai dos cornetins em frente à taberna e que soa “ao balido das ovelhas”. O Rei também lá está, mas ninguém o vê. Importa ver é estes homens que nenhum berro rouco, nenhum gaita ou toque ritmado de tambor pode ajudar, fazê-los acreditar, orgulhá-los de serem heróis. E sempre a lama, “e uma chuva miudinha que cai para fazer mais lama.”

O realismo da escrita de Mary Borden coloca o leitor no meio de todo aquele caos, onde o cheiro a feno acabado de segar é mais incomodativo do que a lama e o sangue entranhados numa farda. Um caos onde a Dor e a Vida brigam pelos feridos como cães por um osso, até que a Morte aparece - “o Anjo, a pacificadora, a curandeira, pela qual esperamos, pela qual rezamos - [que] chega silenciosamente, enxota a Dor e a terrível e rabugenta Vida, e deixa os homens em paz”. O apurado sentido para o absurdo da autora leva-nos ao encontro de cirurgiões que discutem ostras em redor de um pulmão em plena hemorragia, de um joelho amputado que por pouco não é servido ao jantar ou dos homens mandados para as trincheiras e remendados quando de lá regressam, como se fossem roupa mandada para lavar e remendada quando é recebida de volta. Ainda que o horror cru dos factos possa estar esbatido e a realidade mitigada (“porque era incapaz de uma aproximação mais contérmina à verdade”, diz a autora), “A Zona Interdita” é um livro de uma violência que roça o insuportável, mas de leitura imprescindível pelo que acrescenta à compreensão do ser humano em momentos limite da sua existência.

Sem comentários:

Enviar um comentário