LIVRO: “Paisagens Construídas – O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras”,
de Valdemar Cruz
Fotografias | Inês d’Orey
Ed. Edição do Autor, Fevereiro de 2024
“Na solidão de uma tarde gélida de inverno, a fúria das ondas massacra a costa e o mar não é apenas a fonte de onde jorram todos os medos, todos os perigos. As águas transportam um desespero incontrolável até ao momento de se desfazer em espuma a avalanche de uma natureza feita de mágoa. Na solidão de uma tarde gélida de inverno, na marginal de Leça da Palmeira, se o olhar procura, vê uma pequena e, na aparência frágil, construção a desafiar o mar. A desafiar a força daquelas marés. Vivas. Tão vivas quão poderosa é a sua capacidade de destruição.”
Depois de “Retratos de Siza”, livro de 2017 editado pela Lápis de Memórias, Valdemar Cruz regressa ao vasto e fascinante mundo da Arquitectura com “Paisagens Construídas – O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras”. Obra de fôlego, com fotografias de Inês d’Orey e design gráfico de André Cruz, o livro abraça um “corpo de dezasseis obras representativas do que de melhor conceberam os arquitetos portugueses desde o início do século XX até a atualidade”. Na tentativa de descodificar o título, o leitor depara-se com aspectos singulares de um projecto que, sendo pessoal, procura abraçar a universalidade. Não é Valdemar Cruz que elege as obras, antes rende-se às escolhas individuais de mais de meia centena de personalidades, na sua maioria arquitectos, mas também académicos, engenheiros, artistas plásticos, críticos, curadores, fotógrafos e um geógrafo. Por outro lado, o autor resiste à tentação de elaborar um “best of…”, sempre redutor nas suas premissas, antes optando por apresentar as obras por ordem cronológica, uma solução com tanto de elegância como de equanimidade.
Sabia que a Casa de Chá da Boa Nova, obra maior de Álvaro Siza, encerra um segredo quanto à sua improvável localização? E que o Bloco das Águas Livres, dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral está repleto de pinturas, murais, mosaicos, vitrais e relevos de Almada Negreiros, Manuel Cargaleiro, Jorge Vieira, José Escada e Frederico Jorge? Sabe qual foi o argumento utilizado para convencer o ditador Salazar a viabilizar o projecto de Archer de Carvalho, Nunes de Almeida e Rogério Ramos para a Barragem e Complexo de Picote, em Miranda do Douro? E que a construção da “pedreira”, como é conhecido o Estádio Municipal de Braga, de Eduardo Souto de Moura, obrigou à retirada de 1,8 milhões de metros cúbicos de material rochoso? Estas e outras revelações vão sendo disponibilizadas à medida que mergulhamos no livro. Com enorme sensibilidade, Valdemar Cruz não só aborda cada uma das obras do ponto de vista da sua complexidade e desafios, como sabe encontrar o tom certo para realçar aquilo que as une, independentemente do muito que, eventualmente, possa separá-las.
Passando “da sala para o quarto”, que é como quem diz, deixando para trás os textos que introduzem cada uma das obras e o seu tom marcadamente poético e mergulhando na intimidade das entrevistas, o leitor é posto à prova, cara a cara com os responsáveis pelos projectos ou pessoas a eles intimamente ligadas. É a hora de juntar as partes e mergulhar no detalhe, ao mesmo tempo que se descobre o amor que se dedica a uma obra desde o primeiro instante, a angústia na busca das melhores soluções, a espera ansiosa pela aprovação dos projectos, a relação nem sempre fácil com os responsáveis pelas encomendas, a articulação preciosa com os engenheiros e restantes agentes que ajudam a pôr a obra de pé, enfim, o olhar para o resultado final e ver que tanto trabalho e tanta expectativa não foram em vão. Falta desvendar o “+1” do subtítulo e esse é o desafio que Valdemar Cruz oferece ao leitor, abrindo caminho a novas hipóteses, a novas “paisagens construídas”. Este “+1” é, em última análise, um exercício de liberdade e de cidadania. Afinal, “foi para isto que se fez o 25 de Abril”.
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