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sábado, 3 de fevereiro de 2024

LIVRO: "Os Esquecidos de Domingo"



LIVRO: “Os Esquecidos de Domingo”,
de Valérie Perrin
Título original | “Les Oubliés du Dimanche” (Éditions Albin Michel, Paris, 2015)
Tradução | Maria de Fátima Carmo
Ed. Editorial Presença, Novembro de 2023


“Tenho de conseguir abri-la. Lá fora já está escuro como breu. A minha lanterna não ilumina praticamente nada. O silêncio que me rodeia é aterrorizador. Além disso, não sei o que se passa com a minha cabeça, mas dou comigo a pensar no meu pai. Não como se pensa no gémeo de um gémeo, numa pessoa numa moldura sobre o aparador, num fait divers, numa campa florida. Não. Dou comigo a pensar nele como se pensa num ser humano que morreu na estrada aos quarenta anos, deixando uma filha pequena em casa dos pais, num domingo de manhã. Uma filha pequena que tinha medo de uma conduta do lixo. Será que as pessoas que têm um pai percebem a sua sorte?”

Justine Neige tem vinte e um anos, trabalha desde os dezoito num lar de idosos chamado As Hortênsias e adora aquilo que faz. Adora o contacto com os velhos, a sua capacidade de contarem histórias como ninguém, os olhos da cor de um lençol desbotado, as mãos prontas a serem tocadas, o lenço de papel que apertam com muita força no punho gelado. Afeiçoou-se particularmente a Hélène, “a senhora do quarto 19”, uma idosa cujo passado lhe vai sendo confiado como um puzzle e que ela procura transcrever, para grande deleite de Roman, o neto de Hélène. Para além de prestar cuidados durante o dia e de ler na voz dos velhos ao serão, Justine gosta de recuperar das preocupações no Paraíso, uma discoteca onde vai aos sábados à noite e onde se diverte nos braços de rapazes cujos nomes não procura sequer recordar. Mas a grande protagonista do romance será mesmo Hélène, “a senhora da praia”, e também uma gaivota que lhe vive por cima da cabeça.

Misturando habilmente a emoção e o humor, Valérie Perrin volta a oferecer-nos um romance terno e comovente, depois dessa pérola que é “A Breve Vida das Flores” (o “depois” induz em erro, já que “Os Esquecidos de Domingo” é o primeiro romance da autora, embora tenha sido editado em Portugal posteriormente àquele). A combinação da história de Hélène e Lucien, um casal com um amor desmedido que nem a guerra e a deportação conseguiram separar, com a mais recente de Justine, a jovem auxiliar de uma energia inesgotável e de uma bondade sem limites, permite desfrutar de momentos de enorme intensidade poética, mas também da emoção que se desprende do livro à medida que um terrível segredo de família vai sendo revelado. Se Justine, com a sua infinita empatia pelos velhos, dá ao romance o toque certo de humanidade, a personagem de Hélène é a nota de poesia, graças à sua história de amor com Lucien, ao calvário da guerra, à espera do seu regresso, à passagem do tempo ou à presença da gaivota.

“De que forma se entrelaçam as histórias? Como podem as antigas e novas memórias fazer Justine mudar o rumo da sua vida?” Leve na aparência, a escrita de Valérie Perrin vai muito longe nas suas propostas ao pôr o dedo nas feridas da solidão, da negligência e do abandono. Daí que não seja apenas a gaivota o único pássaro protagonista desta história, mas também o corvo, cujo dom é convocar as famílias dos “esquecidos de domingo”, dizendo-lhes que estão mortos e, assim, obrigando-as a deslocarem-se ao lar onde perceberão, de imediato, que os seus velhos permanecem vivos e têm ainda muito para andar (e têm, finalmente, direito a uma visita, como precisam e bem merecem). Num livro onde a graça e a melancolia se passeiam de mãos dadas, as histórias e as memórias, os conflitos de gerações, as feridas abertas nos corpos das famílias ou o amor que cada um tem para dar são assuntos que merecem um olhar atento e uma reflexão profunda, proporcionando momentos de leitura com tanto de surpreendente como de arrebatador.

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