TEATRO: “De Passagem”,
de Luísa Costa Gomes
Encenação | António Pires
Cenografia | Alexandre Oliveira
Figurinos | Luísa Pacheco
Interpretação | Francisco Vistas, João Barbosa, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo, Sandra Santos
Produção | Ar de Filmes / Teatro do Bairro
90 Minutos | Maiores de 12 anos
Teatro do Bairro
27 Jan 2024 | sab | 18:00
O jovem Roberto tirou um ano para ver o mundo. Chamem-lhe viagem iniciática, naquela tradição perdida do Grand Tour romântico. Vai de bicicleta, uma concessão à modernidade, de mochila às costas, sem rumo, desenhando paisagens aquáticas onde as encontra. Quando chega ao topo de uma montanha, no ermo, encontra António, ali retirado, em conflito com a Natureza circundante. António, doente, luta com a sua incapacidade de pôr termo à vida. Roberto apercebe-se, ao cair dessa noite, que lhe roubaram a mochila com tudo o que ele tinha. Dividido entre procurar os seus bens e deixá-los seguir caminho, decide passar a noite em casa de António. E este usa o bom Roberto como arma involuntária para se suicidar. Pelas mesmas pitorescas montanhas deambulam, pedestres, dois cavalheiros cuja generosidade raia os limites da loucura. Domingos e Augusto são testemunhas benévolas das consequências do “crime” de Roberto. Pelas serranias floridas anda também Maria Rita, com seu filho e marido, procurando (mas não excessivamente) o pai desaparecido.
“De Passagem” começou por ser “Just Passing Through”, uma opereta em cinco actos, em inglês, cujo tema eram diversas formas de economia: Dar e receber, amar, comprar e vender, roubar e burlar, trocar coisas por coisas e ideias de coisas e essas por outras. Na troca se cria a ilusão, mais-valia e enganos. Seja uma mochila roubada ou um pai desaparecido, um belo prado verde, um caderno de desenhos ou uma bicicleta, tudo é valor criado e estimado. Ao longo da peça perceberemos que a economia é, aqui, a da dádiva pura, que provoca um prazer quase viciante – lembramos o Fra Ginepro, companheiro de Francisco de Assis, que não podia ver um pobre sem lhe dar a túnica, aparecendo na choupana dos frades sempre nu! Maria Rita, a mãe (com Marlon, o marido, em efígie, como grande parte das mães), representa a economia que nunca é contabilizada, a economia do amor humano, que aparece ofuscante no amor materno: que é dádiva narcísica, um dar recebendo, uma troca que nos primeiros anos se faz sobretudo consigo própria, projectando na figura do filho imagens de si e de outros seres por si construídos.
Prosseguindo uma parceria com o Teatro do Bairro (e com o encenador António Pires, em particular) que remonta a 2010, Luísa Costa Gomes volta a oferecer-nos um texto riquíssimo na sua mensagem e significados, recheado de apontamentos demonstrativos do cuidado e subtileza da sua escrita, feita de diálogos intensos e vivos, plenos de ritmo e carregados de humor. É um texto simples, que nos confronta com a candura, o brio, a alegria e o deslumbramento genuíno e moral pelas belezas do mundo, mas também com as contrariedades, a melancolia, o aborrecimento ou a raiva que a vida em sociedade pode acarretar. Improváveis e imensamente divertidos, Domingos e Augusto concentram em si o lado poético da peça, figuras arquetípicas que são de um viver cuja alegria e optimismo tresloucado pretendem ser uma afirmação amorosa, humorosa e humorística sobre a nossa passagem neste “vale de lágrimas”. O cenário é de uma enorme beleza e as interpretações são brilhantes. Mais um grande momento de teatro a abrir o ano de 2024.
[Foto: Jaime Freitas | https://www.teatrodobairro.org/]
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