LIVRO: “O Monte do Silêncio”,
de Francisco Camacho
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Agosto de 2023
“ – Naquela altura, isto aqui era muito pior do que é hoje. Muito pior. Pagaram-nos bom dinheiro para ficarmos calados, mas não foi por causa do dinheiro que nunca contámos a verdade a ninguém. Foi por vergonha, porque era sangue do nosso sangue e nunca me perdoei por a termos vendido. A minha irmã Maria já não durou muito tempo, começou a não dizer coisa com coisa e tivemos de interná-la. Para lá ficou, desconfio que morreu de desgosto… Vergonha, sim. Ou achas que, lá por a minha vida ter sido o que foi, não sei o que é ter vergonha? Sei muito bem. Mas agora cuspo sangue a toda a hora, resta-me pouco tempo e quero é que vocês se fodam. Por isso, vai lá para casa e dá-lhes a puta da novidade.”
Fraude, corrupção, evasão fiscal, burla qualificada, lavagem de dinheiro, falsificação de documentos, suborno, peculato, recebimento indevido de vantagem. Qualquer que seja o seu teor, este tipo de listas dos chamados crimes de “colarinho branco” remete na sua grande maioria para casos mediáticos como o Freeport ou EDP, Bragaparques, Tecnoforma ou Vistos Gold, o caso BES, o Processo Face Oculta, a Operação Marquês ou a recente Operação Influencer. Casos em que, entre os indiciados, vamos encontrar primeiros-ministros, ministros, secretários de estado, deputados, uma infinidade de autarcas e homens de negócios, que vão de “simples” sucateiros a banqueiros “donos disto tudo”. É com este meio em pano de fundo, onde a cultura de favores impera, que se estende “O Monte do Silêncio”, o mais recente livro de Francisco Camacho, um romance que cruza as convenções do policial, do mistério e do “thriller” com a promiscuidade entre os negócios e a política, a actividade das máfias da droga, do tráfico de seres humanos e da imigração ilegal, a exploração de mão-de-obra barata e o crime violento.
A acção decorre entre os anos 80 e a actualidade – entre a construção desenfreada de vias rodoviárias que cobriram o nosso território de auto-estradas e a cultura intensiva de frutas e legumes no litoral alentejano, “alimentada” por mão de obra albanesa, paquistanesa, nepalesa e outras –, oferecendo um retrato nada simpático da evolução do nosso país nestas últimas quatro décadas. O assassínio de uma mulher serve de ponto de partida a uma história que irá levar o leitor ao encontro dos segredos mais bem guardados de uma família da alta sociedade, tutelada por um homem de negócios que, no tabuleiro dos interesses e favores, soube fazer o seu jogo e crescer desmesuradamente, garantindo a confiança dos poderosos e construindo uma fortuna colossal. Um sobrinho deste homem, também ele uma pessoa pouco recomendável, embora por outras razões, será o “pivot” da narrativa, somando parcelas que, a pouco e pouco, o farão tomar consciência das realidades de um meio que afinal desconhecia, um meio sinistro e ameaçador, no qual não se olha a meios para alcançar os fins.
É sabido que os melhores ingredientes não determinam, por si só, o melhor repasto, mas a verdade é que Francisco Camacho se mostra com este livro um “chef” à altura das circunstâncias. A sua carreira no jornalismo (que trocou, em 2010, pela edição de livros) ter-lhe-á oferecido matéria e confiança suficientes para abraçar um projecto de grande envergadura, com várias histórias a correr em paralelo, sem nunca perder o fio à meada. Com um sentido do ritmo preciso, é engenhosa a forma como o autor combina os dramas pessoais com a história maior de uma família (de um país?) à deriva e como tempera o vinco forte da ficção com apontamentos do real, reorientando o leitor num espaço e num tempo que reconhece como seu. Esta mescla de verdade e fantasia confere ao livro um interesse inesperado, sobretudo para quem, como eu, há muito deixara de acreditar neste género mais ligado ao “thriller” e se viu, de súbito, embrenhado na leitura com emoção e afinco. Creio que devo a Francisco Camacho este resgatar do prazer que um bom livro pode suscitar.
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