LIVRO: “Palavras Nómadas”,
de Dora Gago
Ed. Edições Húmus, Janeiro de 2023
“De repente, apenas existe esta cadeira, esta mesa na esplanada, o grito rosado das buganvílias. E o sumo de laranja natural, com uma pedra de gelo, que tal como a madalena saboreada pelo narrador proustiano me transporta às laranjas que colhia e espremia, no reino do fim da infância, num espremedor ainda artesanal. A sensação de carícia líquida a colar-se-me às mãos e o mesmo sabor, adocicado, mas com aquele travo único a unir o passado ao presente, a fazer-me desaguar no dia 12 de Fevereiro de 1984, desembarcando no momento exacto em que senti que queria ser escritora e comecei a escrever.”
Chegamos ao fim de “Palavras Nómadas” com a sensação de termos feito uma longa viagem. Exploratória, diversa, distinta, de abertura a novos lugares, a novas ideias, a novas formas de estar e ver o mundo. Feita por interposta pessoa, uma viagem que nos convida a vestir a pele da escritora, a abraçar o risco do desconhecido, a partir à aventura. De Montevideu a Londres, de Pequim a Varanasi, com âncora mais ou menos fixa em Macau, iremos perceber que são ilimitados os tons que cobrem esta nossa “bola colorida” e que é muito mais o que nos une que aquilo que nos separa. Conjunto de cinquenta crónicas, com um belíssimo prefácio de Onésimo Teotónio Almeida e uma nota final redigida pela autora, “Palavras Nómadas” faz-se de “mochila da memória” às costas, num assumir a deriva como forma de reconhecimento, reaprendizagem e readaptação a um mundo que pula e avança, que teima em escapar-nos. “Isto porque, inevitavelmente, os lugares mudam e nós também”.
Ler “Palavras Nómadas” é debruçar um olhar sobre nós próprios, tão carregado está o livro de memórias que reconhecemos como nossas, tantas as emoções convocadas, nas quais nos revemos e que abraçamos de forma particular. O momento de solidão extrema quando a bagagem se extravia, o horror a cidades grandes e cinzentas, adequar a lógica cartesiana a um sentido de orientação mais do que deficitário, os imponderáveis numa esquadra de polícia, num compartimento de alfândega ou num cabeleireiro, o quanto um supermercado pode ser um verdadeiro quebra-cabeças, voos cancelados e viagens adiadas, problemas com o quarto de Hotel, um museu no meio do nada, o Ano do Tigre no lugar que nos é mais querido, a confusão dos nomes, a morte de mais “um moço da minha idade”. Enfim, 2020 e o Ano do Rato que, como vaticinava um antigo almanaque chinês, ficou “marcado por epidemias, doenças, convulsões a nível político e económico, grande instabilidade, muitas manifestações, protestos a nível mundial.”
Que ligação pode haver entre uma livraria e uma loja de bicicletas? Ou entre uma farmácia e uma tabacaria? A estranheza toma-nas de surpresa ao virar de cada página, desafiando “as arestas aguçadas do absurdo”. É Macau, com todos os mundos dentro do seu mundo. Mundos que Dora Nunes Gago tão bem sabe esculpir no mármore das palavras, tratando o improvável com ironia e carregando de humor a sua escrita (veja-se o que podemos sugerir a uma canção dos Xutos e Pontapés). Ao mesmo tempo, no meio de tanta azáfama, é capaz de se deitar furtivamente na relva, por companhia Haruki Murakami e o seu “Auto-retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo”. E quem diz Murakami, diz Orhan Pamuk ou Emily Dickinson, Garcia Marquez ou H. P. Lovecraft, V. S. Naipul ou Maria Ondina Braga, Camilo Pessanha ou Lídia Jorge. As boas companhias - leia-se, “os seus escritores de culto” - no mesmo plano do “Outro”, assim mesmo, com inicial maiúscula, o mesmo Outro que vem provar o quanto a cartografia do nosso mundo é desenhada pelo mapa dos afectos.
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