Páginas

sábado, 18 de novembro de 2023

LIVRO: "O Homem Que Via no Escuro"



LIVRO: “O Homem Que Via no Escuro - A Lisboa de Bruno Candé”,
de Catarina Reis
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2023


“No dia em que morreu, Bruno Candé deixou em cima do balcão da cozinha dois ovos cozidos, um frasco de feijão frade por abrir e uma lata de atum a escorrer. Estes elementos eram já representação de uma vida em suspenso, uma refeição pronta que nunca aconteceu, quando a família irrompeu casa adentro para reconstituir os últimos passos dele. Não foram só os ovos, o atum e o feijão: um bairro inteiro ficou em suspenso quando aqueles três tiros arrebataram Bruno numa avenida de Lisboa.”

25 de Julho de 2020. Bruno Candé sai de casa para comprar tabaco. Conseguimos imaginá-lo a descer a rua nesse início de tarde de Verão, a pedir uma mini e a preparar-se para saboreá-la num banco da Avenida de Moscavide. O tempo é de férias, Lisboa foi a banhos para a Caparica ou mudou-se para o Algarve, é hora de almoço e, por isso, o movimento é muito inferior ao habitual. O resto já não conseguimos imaginar, é coisa de filme. Um disparo surgido como que do nada, uma cadela que foge assustada, um corpo estendido no cimento, atingido no peito por uma bala. Sucedem-se quatro outros tiros sobre o corpo que jaz por terra, dois deles também no peito a ditarem a sua morte. Pessoas que acorrem de todo o lado, uma aluna de enfermagem que presta os primeiros socorros, um homem que se entrega à polícia juntamente com a sua arma, uma semiautomática Walther PP calibre 7,65 mm, e que dirá, a propósito do crime que acabou de cometer: “Não lhe dei tempo.”

A história de Bruno Candé é uma entre muitas a falar-nos de racismo estrutural e da forma como se mantém presente nas mais variadas franjas da nossa sociedade. Há, contudo, uma particularidade neste caso e que o torna relevante entre todos os outros: É que Bruno Candé foi o primeiro homem em Portugal cuja morte deu origem a uma condenação de crime motivado por ódio racial, o que constitui uma sentença histórica. “Preto de merda, em mato-te”, terá dito o autor dos disparos, Evaristo Marinho, três dias antes de levar avante o seu propósito. O tribunal levou em conta a conduta do assassino, a “frieza de ânimos”, acabando por provar o móbil racista e fixando a condenação em 22 anos e nove meses de prisão. Na altura do julgamento, ficou a ideia de que a sentença do homicida de Bruno Candé terá sido importante, “já que pode ser vista como um exemplo positivo do que acontece de mau” e porque constitui uma forma de “tornar as pessoas mais conscientes dos seus direitos”. Hoje, três anos passados sobre este episódio, alguma coisa mudou?

Porque é minha convicção que se algo mudou foi para pior, julgo que este livro de Catarina Reis surge na melhor altura. Continuamos a ter as redes sociais inundadas de vídeos onde são flagrantes as situações de discriminação nos transportes públicos, as agressões a jovens por parte da polícia, as condições de trabalho degradantes dos nepaleses em Odemira, a falta de acesso de muitos timorenses às necessidades mais básicas, os muitos brasileiros que são discriminados no acesso à saúde, à habitação, à educação e, nos casos mais graves, alvo de agressões. Curiosamente, as mesmas redes sociais onde os partidos de extrema-direita legitimam, com a maior desfaçatez, uma série de ideias, muitas vezes reforçadas por questões meramente populistas, sejam ideias activamente racistas, sejam ideias de negação desta discriminação. Por isso importa ler, uma e outra vez, “O Homem Que Via no Escuro - A Lisboa de Bruno Candé”. Para que nos lembremos que há direitos universais que, apesar de estarem já escritos, se encontram por cumprir.

Sem comentários:

Enviar um comentário