LIVRO: “Trás-os-Montes, o Nordeste”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Maio de 2017
“A sujidade era medieval. De Setembro à Primavera mantinha-se nas aldeias o hábito secular que durou até ao fim dos anos 50, de cobrir as ruas com palha, que depois, molhada da chuva e das penicadas de mijo e bosta que se atiravam das janelas - esgotos só no séc. XXI - calcada pelos passantes e os animais, fumegava e fermentava até que, podre bastante, fosse recolhida para ser levada para as hortas, os amendoais e olivais, seu único e muito biológico adubo.”
Regresso a Rentes de Carvalho e à sua magnífica prosa, de novo à boleia dos “retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos. “Trás-os-Montes, o Nordeste” fala, em oito capítulos e um epílogo, do viver e sentir transmontano, do modo de vida das suas gentes, dos seus usos e costumes, tradições, gastronomia. Das majestosas paisagens, do bucolismo dos lugares, do carinho das gentes. Das amêndoas de Moncorvo e das laranjas do Mazouco, dos pastéis de Chaves e das alheiras de Mirandela. De “boa gente, estranha gente, vivendo presa aos anseios de um tempo que passou”. Também da difícil e dolorosa existência no Nordeste Transmontano, “uma das mais atrasadas regiões da União Europeia, que em abandono e vergonhoso desleixo do governo central, talvez só se compare ao Nordeste da Roménia e à região de Severozapaden na Bulgária.”
Com epicentro em Estevais de Mogadouro, os apontamentos de J. Rentes de Carvalho têm contornos geográficos bem definidos, uma espécie de enclave que o autor designa por “seu” Nordeste Transmontano, limitado aos concelhos de Mogadouro, Moncorvo, Freixo-de-Espada-à-Cinta e Alfândega da Fé (ele explica, e bem, porque deixou de fora todos os outros). As ricas terras da Vilariça, a margem direita do Douro, o castelo de Algoso e a Estação do Pocinho, “essa espécie de farol mítico”, são baluartes fronteiriços de um reduto onde se conjuga a crítica com os elogios, as ternas memórias com a mais dura das realidades. É ao correr duma escrita fina, assente num olhar agudo e perspicaz, que percebemos a realidade nua e crua “de uma região que, por continuar pobre e atrasada, facilmente se torna presa de interesses particulares, de um caciquismo e clientelismo cuja única vantagem será a de poderem originar interessantes romances de costumes.”
Deixando de lado as habituais birras e excessos de certos pontos de vista do autor - olhar de esguelha a febre das viagens de lazer, o calar perante a “vergonha” da homossexualidade -, “Trás-os-Montes, o Nordeste” não desmerece no seio desta colecção de “Retratos da Fundação”. À escrita dinâmica e ao interesse dos assuntos abordados, junta-se o humor de alguns apontamentos e a qualidade de quem sabe, realmente, contar uma história. Percebe-se, sobretudo, o cuidado que J. Rentes de Carvalho coloca na forma como aborda os temas mais delicados ou controversos, conseguindo um distanciamento suficientemente equilibrado para que razão e emoção surjam vertidas em partes iguais. Para nosso encanto, o autor faz sair da gaveta quatro textos maravilhosos de uma conterrânea sua que nunca arriscou o passo de publicar aquilo que escreve. Chama-se ela Maria da Piedade Barroso Martins e vale, por si só, a leitura deste livro.
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