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terça-feira, 24 de outubro de 2023

LIVRO: "O Grito dos Pássaros Loucos"



LIVRO: “O Grito dos Pássaros Loucos”,
de Dany Laferrière
Título original | “Le Cri des oiseaux fous” (Éditions Grasset & Fasquelle, 2000)
Tradução | Luis Leitão
Ed. Antígona, Novembro de 2022


“Em que momento começamos a ter consciência da morte de um amigo? Por agora, é a vida que me preocupa. Hoje escapei à morte por um triz e ela continua a rondar. Consigo sentir o seu cheiro tão sensual. Tenho arrepios só de pensar no beijo amarelo da morte vermelha. A morte é branca e fria no Norte. É vermelha e fumegante no Sul. Lá é a alma que morre. Entre nós, é o corpo. Um corpo muitas vezes jovem. A morte, sempre violenta. Traição. Facada nas costas. Bala na cabeça. Sangue. Vermelho. Gritos. Morte.”

1976. Port-au-Prince, capital do Haiti. Aos 23 anos, Dany Laferrière deixa para trás o seu país natal e parte para o exílio. Foge à ditadura de Jean-Claude Duvalier, sucessor do seu pai François Duvalier - Baby Doc e Papa Doc, respectivamente - e às perseguições e violência da tropa de elite e de uma imensidão de chacais sedentos de sangue que constituem a milícia de voluntários da Segurança Nacional, conhecidos como tonton macoutes. A morte do seu melhor amigo é o momento que marca esse dia, o primeiro do resto da vida de Laferrière, precipitando a decisão de partir. Filho da fome, do medo e da urgência, ele revisita pela última vez os seus lugares de sempre, despedindo-se dos seus deuses, dos seus monstros, dos seus amigos, dos seus amores, das suas glórias passadas, do seu eterno Verão, dos seus frutos tropicais, dos seus céus, da sua flora, da sua fauna, dos seus gostos, dos seus apetites, dos seus desejos, de tudo o que até então tinha feito a sua vida.

Relato pungente de um dia marcante na vida do jornalista e escritor Dany Laferrière, “O Grito dos Pássaros Loucos” é também um retrato dos dias de chumbo que tomaram conta do Haiti durante praticamente três décadas, de 1957 a 1986. “Como poderíamos sentir-nos cidadãos de um país onde mataram o nosso melhor amigo e procuram matar-nos também?”, é mais do que uma pergunta retórica, abrindo a porta a um conjunto de reflexões que têm o seu início no indivíduo, percorrem as incongruências e o absurdo de uma sociedade que despreza o valor da vida humana e regressam ao indivíduo na urgência de uma escolha ou de um juízo. O indivíduo é, neste caso, o próprio autor, coração que sangra na sua verdade como na sua raiva, que grita a miséria e as injustiças, que hesita e se desfaz em incertezas. Que nesse deambular errante por geografias precisas, ao encontro dos lugares mil vezes visitados, das comidas mil vezes saboreadas, dos amigos mil vezes amados, se dá conta de que está ainda cá, mas já lá. Ou melhor: Já não está cá, mas ainda não está lá.

Despojado de ilusões, acossado num território onde deveria sentir-se livre, impotente face à arbitrariedade e impunidade dos poderosos, tomado por sentimentos contraditórios que o levam a expôr-se quando as circunstâncias exigiriam discrição e recolhimento, Laferrière faz do livro um exercício de partilha, onde se pesam a dúvida e o medo, a dignidade e a razão. Fruto de uma escrita incisiva e envolvente, cada passo dado é uma extra-sístole no coração do leitor. Comprometidos e solidários com o drama que se abre à nossa frente, acompanhamos em sobressalto cada pequena parcela do livro, desde a porta de casa que se abre às 12h07 até à porta do avião que se fecha às 06h58 do dia seguinte. À espera do autor há todo um novo mundo, “uma cidade nova para conhecer de cor, sem guia, nem deus. Da liberdade como um bem maior nos fala “O Grito dos Pássaros Loucos”, mas também do direito a uma vida digna, à segurança pessoal, à justiça, ao trabalho e a todos os direitos inalienáveis que importa salvaguardar e dos quais, cada vez mais, se faz tábua rasa nas nossas sociedades onde o egoísmo e a falta de compaixão pelo outro são, cada vez mais, denominadores comuns.

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