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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

LIVRO: "Porto ou a Insurreição do Olhar"



LIVRO: “Porto ou a Insurreição do Olhar”,
de André Domingues
Ed. Editora Labirinto, 2023


“Receamos a vida. O Outono apodera-se da cidade como do nosso coração. Saturno devorando os seus filhos. Tem sido sempre assim, desde que Verlaine, outro enorme poeta do tempo perdido, escreveu: ‘Il pleure dans mon coeur / comme il pleut sur la ville’. Setembro. Mais ou menos langorosos, melancólicos ou incertos, os gestos enfraquecem no seu limite. Setembro é um jardim cheio de graça e de prodígios, uma paisagem extensível e despida que o vento varre num despovoado poema. Um golpe de calor que sobe por entre as cores fatigadas do sentido e rebenta contra o novo léxico do céu.”

Quando o livro se fecha sobre a palavra “luz” e, pela enésima vez, dou por mim a saborear a metáfora e a cavalgar o paradoxo, há uma frase que se desprende de uma das crónicas e me vem sussurrar ao ouvido: “A intimidade pode ser fulgurante entre leitores verdadeiros”. Poesia vertida em prosa pela pena inspirada de um poeta - porque só o poeta consegue encontrar alma no aço de uma ponte ou no granito de um muro -, “Porto ou a Insurreição do Olhar” é, entre o envergonhado e o atrevido, uma declaração de amor incondicional à cidade. Por caminhos de luz e sombra, André Domingues toma-nos pela mão e, de S. Lázaro às Virtudes, da Ribeira até ao mar, mostra-nos como o sumptuoso e o singelo, o genuíno e o fútil, o autêntico e o ilusório, convergem de igual modo no lugar do coração. Olha-nos nos olhos e sorri. Sorrimos também, percebendo que há mais quem sorria: Verlaine, Rimbaud, Baudelaire. Também Bioy Casares, Umbral, Perec, Pessoa, Onetti, Rilke. Sobretudo Eugénio. Eugénio, de quem o autor toma por sua “a insurreição do olhar”.

Observador privilegiado de “uma das raras cidades desmedidas”, André Domingues “anda à chuva e não se molha”. Há nele um prazer enorme em curto-circuitar caminhos óbvios, estender pontes a toda a cidade, irmanar a marginal e o marginal. Soberano e livre, cruza as praças e ruas do Porto com as de Budapeste ou Barcelona, Praga ou Sevilha. Arregimenta artistas como Bernini, Schiele, Borges ou Jordi Savall e mistura-os com “a multidão incansável no seu afã de redefinir o vazio”. Torna palpável o etéreo, num homem que chora convulsivamente no banco de trás de um táxi, num casal a fazer amor sob uma montanha de farrapos e de papelão ao final da Rua de Camões ou em dois jovens que protagonizam uma cena de ciúmes no Largo de S. Domingos. Destapa as contradições que a Rua da Alegria encerra, procura compreender a morte em Agramonte, espreita as noites como bombas prestes a rebentar, ama os gatos que, “como os melhores poemas, são intrinsecamente insubmissos”.

Por muito que o título o possa dar a entender, “Porto ou a Insurreição do Olhar” não podia estar mais longe do roteiro turístico. As geografias servem o propósito de afirmar a cidade, mas o que confere homogeneidade ao livro é a intencionalidade na abordagem aos seus “estados de alma”, frívolos e volúveis, facilmente impressionáveis, subjugados aos caprichos do tempo. Há uma enorme preocupação em situar no tempo cada uma das crónicas, relevando as estações do ano, uma quadra precisa, os dias “velozes e esplêndidos” de Julho, o mês de Agosto em que “as temperaturas são vãs” ou o Setembro, “o mês mais cruel”. Regressamos a cada crónica, como quem regressa a uma cidade que se está a aprender a conhecer e sobre a qual recai um olhar renovadamente insurrecto. André Domingues mostra-nos como fazer, uma ponta da nossa atenção no atelier de Emerenciano, a outra num céu assombroso de El Greco; uma nesga do nosso sentir num poema em plena combustão do Ulisses, no relinchar do Miguel Borges, nos gatos de Eugénio.

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