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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

LIVRO: "As Malditas"



LIVRO: “As Malditas”,
de Camila Sosa Villada
Título Original | “Las Malas”, 2019
Tradução | Helena Pitta
Ed. BCF Editores, Julho de 2022


“Por baixo do sangue, dos hematomas e dos dentes partidos via-se uma rapariga bonita que eu conhecia. Vinha do mesmo vale que eu. Mas estava muito magoada, o namorado tinha-a espancado a valer, a cara estava um destroço, sangrava dos ouvidos, quase não conseguia respirar porque tinha várias costelas partidas e uns tremores e convulsões que metiam medo. As travestis choravam enquanto tratavam dela. Porquê tanta maldade e selvajaria, porquê este mundo de merda, porquê esta injustiça imensa, porquê tantas misérias no nosso caminho?”

Percorria dezenas de quilómetros de bicicleta para poder ser aquilo que na verdade era. Deixava para trás a casa e a aldeia, na mochila vestidos e maquilhagem roubados à mãe. Chegava à estrada e a pampa estendia-se para Norte com os seus enormes blocos de pedra, para além dos quais todas as vidas pareciam possíveis. Do lado contrário, o olhar perdia-se nas aldeias escondidas no vale, ao fundo a cordilheira que se elevava, majestosa, indecifrável. Dava um nó na t-shirt acima do umbigo, enfiava uns calções minúsculos, pintava lábios e olhos e punha-se a acenar aos camionistas que passavam. Muitos apenas buzinavam, mas outros paravam e seguia com eles. Amava-os de todas as formas, fantasiava com a possibilidade de viver com alguns deles para sempre, de tão bonitos que os achava. Cada dia afastava-se mais, pedalava mais quilómetros. Fugia de uma zona de conforto que nunca o foi para se aproximar de si e do direito a ser mulher. A ser Camila.

Descrito pela autora como “um canto ao travestismo”, o livro recupera da forma mais crua uma palavra que, sob nomenclaturas assépticas - “mulheres trans, transexuais, transgénero (…)” -, é sinónima “de sobreviver, de viver, de foder, de nos alimentarmos nem que fosse com terra.” Nele, Camila Sosa Villada conta como, juntamente com um grupo de outras como ela, se prostitui no Parque Sarmiento, um bairro mal afamado da cidade de Córdoba. Aí encontram um bebé abandonado numa vala, prestes a morrer, e decidem tomar conta dele. O que se abre a partir desse momento é um território inclassificável em que se mistura o romance, a crónica, a autobiografia, o ensaio e a poesia. Um território no qual as atrocidades e a doçura se revelam sob as asas do realismo mágico, com travestis doentes que se transmutam em pássaros, outras que caçam como lobisomens em noites de lua cheia, “homens sem cabeça” que regressam das guerras africanas para se apaixonarem loucamente por elas e uma matriarca travesti que acolhe e embala esta criança, que a amamenta e lhe põe o nome de “Brilho dos Olhos”.

Lemos “As Malditas” e sentimos que, embora a sua publicação seja recente, começou a ser escrito no dia em que Camila Sosa Villada nasceu. Nele se revela em culpa a hipocrisia de uma sociedade que fingiu o seu cadáver e o de muitas outras, e continua a fazê-lo nos dias de hoje. O trabalho de arqueologia sentimental que se abre à leitura tem por campo um “cemitério onde estão enterradas tantas travestis anónimas, das quais só é recordada uma alcunha ou uma façanha”. É lá que, sob as primeiras camadas teóricas, a autora expõe ao nosso olhar “os insultos, primorosamente cobertos por mantos deliberados de boas maneiras e de educação branca e endinheirada”. Retirados cuidadosamente, deixaram à vista “uma palavra que cheirava a morte, a merda, a sémen, a prostituição, a noite, a frio, a subornos, a sangue e a cárcere, a abandono e a miséria. Uma palavra afiada como uma lâmina, ofensiva, cheia de sujidade. (…) Travesti! diziam, e isso bastava para formatar a imaginação e a rejeição de toda uma sociedade que já se tinha adaptado a essa forma de identificação.” Prepare-se o leitor para o amor, mas também para a dor. É que “As Malditas” ama e dói como nenhum outro livro.

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