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quinta-feira, 6 de julho de 2023

LIVRO: "Histórias Secretas do Atentado a Salazar"



LIVRO: “Histórias Secretas do Atentado a Salazar”,
de Valdemar Cruz
Ed. Campo das Letras, Abril de 1999


“De repente, tudo parece ruir como um castelo de cartas. Depois de longos interrogatórios e de intensas madrugadas de torturas e confissões arrancadas a ferros, não era possível que um conjunto de presos de outra secção viesse agora destruir tudo quanto fora laboriosamente arquitectado. Nem importava se estes novos presos até tinham reconhecida actividade política. Pouco interessava se os culpados encontrados pela direcção da PVDE eram indivíduos sem instrução, completamente analfabetos, porventura incapazes de distinguir um oposicionista de um fascista, quanto mais um anarquista de um comunista.”

Era um domingo como tantos outros, naquele Verão de 1937. Como de costume, António de Oliveira Salazar, dirige-se a casa do musicólogo Josué Trocado, para assistir à missa dominical. Passam 20 minutos das dez da manhã quando o carro que transporta o ditador pára em frente ao nº. 96 da Rua Barbosa du Bocage. “No exacto momento em que pousa o pé no passeio, um terramoto varre a avenida. Os gritos de pânico perdem-se, abafados pela violência de uma explosão.” Salazar, assim como toda a sua comitiva, saem ilesos do atentado. Os dias seguintes serão de fervoroso apoio nacional ao Presidente do Conselho, com as manifestações de rua a sucederem-se quase de forma espontânea e os jornais a darem conta dos preitos de homenagem que brotam dos quatro cantos do Império. A repulsa pelo atentado é unânime e veemente. Enquanto isso, as diferentes polícias desencadeiam uma furiosa caça ao homem. Mostrar eficácia e apresentar culpados é o sentimento que as move, estabelecendo entre si “uma tenebrosa competição, responsável por prisões arbitrárias e falsas confissões arrancadas sob tortura.” O resultado é desastroso.

Jornalista profissional desde 1976, Valdemar Cruz parte da consulta exaustiva de um processo que esteve em segredo durante seis décadas, para reconstruir os passos da investigação policial subsequente ao atentado a Salazar. Acrescentando passagens do livro “História de um Atentado - O Atentado a Salazar”, de Emídio Santana, e informação recolhida nos jornais da época, com particular destaque para “O Século” e o “Diário da Manhã”, o escritor oferece-nos uma visão alargada do Portugal de então, cinco anos após a investidura de Salazar como responsável máximo pelo Governo da Nação. Cingindo-se à verdade dos factos, Valdemar Cruz mostra-se exímio na forma como desdobra as fases deste sombrio processo e como cruza os implicados, sejam eles agentes das várias polícias ou os suspeitos que, nos cárceres da António Maria Cardoso ou do Aljube, oferecem a “verdade” aos seus verdugos sob os tratos mais cruéis. O ritmo da narrativa é alucinante. O desenrolar dos acontecimentos prende o leitor e mergulha-o num sem número de episódios rocambolescos, mal-entendidos, afirmações extemporâneas, prisões e torturas, com a intervenção da Polícia Secreta do fascista Mussolini e com Franco e o próprio Hitler em pano de fundo.

Mas se o livro é sobre quem tem o poder e o aplica de forma discricionária, ele é, acima de tudo, sobre aqueles que, desgraçadamente, caem na alçada da polícia política e se vêem confrontados com uma máquina repressiva que, sem contemplações, os reduz ao grau mais baixo da sua existência. É lá que são mantidos, mesmo que as evidências ditem a sua inocência. As revelações de um despeitado comandante de Divisão da PSP, Baleizão do Passo, servem para atear a fogueira. A audição dos vários intervenientes, conduzida pelo Juiz Alves Monteiro, nomeadamente dos capitães Agostinho Lourenço e Ernesto Catela, respectivamente Director e Secretário-Geral da PVDE, reveste-se de momentos inacreditáveis, mostrando a real dimensão do aparelho repressivo do Estado Novo, o maquivelismo dos seus processos e uma flagrante impreparação. Controlada pelo aparelho, a imprensa situacionista fica igualmente mal na fotografia. O processo será arquivado, sem que dele se retirem consequências. Pior ainda, “José Horta, Alfredo Elói, Jacinto Carvalho, Francisco Pinhal e outros estavam inocentes, mas foram presos, espancados e torturados. Um dia deixaram-nos sair. Mandaram-nos embora com o mesmo sem-cerimónia com que os foram buscar. Olharam-nos apenas como um número a abater ao efectivo de prisioneiros. Perderam-se no silêncio do país.” Valdemar Cruz faz-lhes o devido reparo.

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