LIVRO: “Amor Cão - e outras palavras que não adestram”,
de Rosa Alice Branco
Ed. Assírio & Alvim, Março de 2022
“ (…) De certo escolheste um cão selvagem, porque a analogia
é a ignorada razão de toda a escolha. À noite,
um macho bravio ama-te por quem és, e quando
os três se sentam na relva a olhar as estrelas
e abanam a cauda de alegria não há limite
para a desobediência civil, como diria Thoreau.”
Mudo e quedo, os dentes afiados por trás da dissimulação, ou a abanar a cauda num desvario, assim é “Amor Cão”, conjunto de quarenta e quatro poemas de Rosa Alice Branco, o quotidiano unido ao eterno, o todo à essência, o indivíduo à matilha, a presa ao predador, o doméstico ao que não se adestra. Arrepiante como o uivo da fera, poderoso como as suas mandíbulas, verte-se em palavras que são paus atirados para que os possamos (se assim o soubermos ou quisermos) recolher com os dentes e devolver para nova correria, aproveitando tudo até ao osso. Um livro que nos fala do sentir e dos sentidos, de um mundo como uma incógnita que alberga todos os perigos, da fome colada à pele, do faro que endoidece, das feridas que tingem os dias, da morte que não tarda em chegar. Um livro que nos irmana numa tribo, vítimas e predadores no peito dos outros, a obediência mastigada em cada gesto, solidários no desespero partilhado, mas “sem nunca esquecer a desconfiança no bolso das moedas”.
Ao parágrafo anterior faltam aspas. Muitas. Omiti-as propositadamente, entregando-me à arquitectura das palavras como quem constrói a própria casa a partir dos muros derrubados das casas dos outros. Este exercício dá-me a possibilidade de falar da enorme unidade que atravessa o livro, cada sujeito, cada ideia, cada frase, complemento da anterior ou da que está para vir, passados e futuros vertidos no mesmo cadinho onde se fundem desejos, prazeres e frustrações. A padronização de comportamentos individuais e sociais subjaz ao livro e remete para o processo de domesticação que se iniciou com o cão, segundo alguns especialistas há 40.000 anos. Todos os poemas têm, em epígrafe, uma citação de Konrad Lorenz que funciona como uma espécie de tema para cada um deles. Ao leitor o privilégio de entreabrir a porta de um laboratório onde as disciplinas artísticas e humanísticas contaminam e são contaminadas pelas técnicas e científicas. O processo resulta fascinante, mas o produto final mostra que a Humanidade sai muito mal da fotografia.
Quem adestra e quem é adestrado. A questão surge de forma repetida nas dobras do poema. “Entre o que é dado e o porquê há toda a história do bandido.” O olhar de Rosa Alice Branco é certeiro. Com ironia, põe o dedo na ferida, diz-nos quando espetar as orelhas ou abanar o rabo. Mostra-nos um reino entre quatro paredes habitado por cão e dono. Cão lupino, cão chacal, apenas cão. (Quem diz cão, diz cadela). Cão manso e fiel, cão seguidor e submisso, cão feroz e assassino, cão tresloucado, cão enxotado, cão adoptado. Cão à imagem do dono, dono à imagem do cão. Dono adoptado, dono enxotado, dono tresloucado, dono feroz e assassino, dono seguidor e submisso, dono manso e fiel. (Quem diz dono, diz dona). Dono lupino, dono chacal, apenas dono. Por entre cão e dono, ou através deles, passam desejos e passos apressados, amores à primeira vista e amor ao meio da tarde, canela e cabelos sacudidos, concursos de beleza e batimentos em código morse. O cão que se afaga é uma figura de estilo. E nós, aqui, coração amarfanhado, de roda com as palavras, como quem esburga “o osso essencial do dia a dia”.
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