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domingo, 21 de maio de 2023

CONCERTO: "Les Cadences du Monde"



CONCERTO: “Les Cadences du Monde”,
Louis Sclavis Quartet
Louis Sclavis (clarinetes), Bruno Ducret (violoncelo), Vincent Courtois (violoncelo), Keyvan Chémirani (zarb, daf)
Auditório de Espinho | Academia
20 Mai 2023 | sab | 21:30


“Ce soir, été boire um coup sous les acacias pour écouter les Tziganes qui se surpassaient. Sur le chemin du retour. j’ai acheté une grosse pâte d’amande, rose et huileuse. L’Orient quoi!”
[Excerto de “L'Usage du Monde”, de Nicolas Bouvier, Ed. Librairie Droz, 1963]

Uma longa estrada branca, as estações do delta, um ponto vermelho, uma subida às estrelas. O caos do mundo. As suas cadências. Figura de proa da música improvisada europeia, Louis Sclavis é um artista que nutre uma ligação permanente com outras formas de arte. “Les Cadences du Monde”, o seu mais recente trabalho, é disso a prova provada, nele se encontrando fortes ressonâncias do trabalho fotográfico de Frédéric Lecloux, “L’Usure du Monde”, o qual, por sua vez, presta homenagem ao livro de viagens de Nicolas Bouvier, “L’Usage du Monde”, onde o escritor suíço narra a viagem que empreendeu de Junho de 1953 a Dezembro de 1954 entre Genebra e o Passe de Khyber (na fronteira do Paquistão com o Afeganistão), ao volante de um pequeno Fiat 500 Topolino. Respondendo às imagens de Lecloux e às aventuras de Bouvier através de países como a ex-Jugoslávia, a Turquia, o Irão, o Paquistão e o Afeganistão, Louis Sclavis deixou-se guiar pela música, compondo o seu próprio caminho através de uma Ásia Central imersa nos seus fantasmas, enigmática na sua ancestralidade, imensamente rica nos seus usos e na sua cultura.

“Les Cadences du Monde” não encheu o Auditório de Espinho, mas encheu todos os presentes da alegria de escutar uma música em total harmonia com a poesia destas “cadências” que, por vezes, gostaríamos de colocar em suspensão, nem que fosse por um momento apenas, para as podermos contemplar na sua enorme beleza e encanto. Ouvir as composições de Louis Sclavis é como estar também em viagem, fazendo parte desse estreitar de fronteiras que é apanágio da sua música. Aqui, a arquitectura de relojoeiro que se abriga em cada peça emerge do seu pendor jazzístico e abre-se à música barroca e às músicas do mundo. Primeiro em tensão, como se percebe em “Une longe route Blanche” ou nos primeiros acordes de “Le chaos du monde”. Depois numa deambulação contemplativa como em “Conte d'un jour” ou nessa belíssima suite em três movimentos que é “Les saisons du delta”. Finalmente, em abandono, como em “Montée aux étoiles” ou em “Red Point”, tema tocado no “encore” e que colocou um ponto final no concerto.

Cerram-se os olhos e a mente abre-se ao ritmo e harmonia de uma música que se desdobra em horizontes coloridos e paisagens contrastantes, na melodia das vozes, no chamamento para a oração. Tal como Bouvier, e muito antes dele Marco Polo, Louis Sclavis escolhe criteriosamente o caminho e, não menos importante, as “companhias”. Bruno Ducret e Vincent Courtois são dois violoncelistas de eleição. O virtuosismo, aliado à capacidade de interpretar com rigor as pisadas numa tão exigente quanto inspirada pauta, faz com que seja neles que a atenção repouse com frequência. Do diálogo que travam entre si refluem frases de grande beleza, a articulação com Keyvan Chémirani - outro músico de excepcional craveira - a criar uma tal simbiose que chega a não se perceber onde terminam as cordas e começa a percussão. Acresce o facto de Ducret ser o autor de dois dos onze temas que pudemos escutar. Falemos, enfim, de Louis Sclavis, a quem devemos o verde das palmeiras, o sabor de um melão doce como mel, o azul de um turbante, um rebanho de ovelhas numa estrada a caminho de Cabul. Uma noite (esta noite) imensamente estrelada.

[Foto: Auditório de Espinho | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]

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