LIVRO: “Quando a Noite Cai”,
de Laurent Petitmangin
Título original | “Ce qu’il faut de nuit” (La Manufacture de livres, 2020)
Tradução | Fernanda Oliveira
Ed. Bertrand Editora, Maio de 2022
“Parecia que estávamos no teatro: mantínhamos a distância, calculávamos as nossas entradas e saídas, por forma a nunca ficarmos encurralados no mesmo corredor. Tinha acabado o tempo em que nos aglomerávamos à volta do pequeno lavatório da casa de banho, para lavar os dentes. Tinha acabado o tempo em que lavávamos a loiça num instante, um em cima do outro, a atrapalharmo-nos um ao outro e sempre a tocarmo-nos e a empurrarmo-nos de forma amável. Agora, os nossos movimentos eram rígidos, cheios de precauções: era preciso deixar uma boa margem, se possível deixar que o outro saísse do local antes de lá entrar. Como se tivéssemos um escafandro de uma tonelada e nos encontrássemos numa zona radioativa.”
Estamos no Norte de França, nos arredores de Thioville, pequena localidade aos pés do rio Moselle e a meia distância entre a cidade de Metz e a fronteira com o Luxemburgo. Fortemente industrializada, a região sofre os efeitos da crise económica de forma severa e até os mais resilientes começam a baixar os braços. O narrador desta história é um deles. Socialista dos quatro costados, vê o descontentamento crescer à sua volta e assiste à ascensão dos movimentos nacionalistas, racistas e xenófobos. Ao mesmo tempo percebe que são cada vez menos os frequentadores da secção local do partido. Dentro de casa a situação não é melhor. Viúvo, ainda a fazer o luto depois de “três anos de hospital, três anos de quimioterapia, três anos de radioterapia”, tenta compatibilizar o seu trabalho nos Caminhos de Ferro franceses com o acompanhamento dos filhos nessa sempre difícil fase da adolescência. Mas quando Fus, o filho mais velho, elege a companhia de um grupo envergando fardas, cabelo rapado à escovinha e deslocando-se em motas de pequena cilindrada, tudo se desmorona.
Com um forte cunho realista, “Quando a Noite Cai” retrata, de forma intensa e emotiva, o esfriar das relações entre um pai e um filho num contexto de crise generalizada. Crise familiar, desde logo, pelo imenso vazio deixado pela mãe e que nada nem ninguém pode preencher. Crise geracional, que põe a nu dois tempos e duas visões da história quase antagónicas, com os valores do colectivo a cederem lugar a um individualismo marcadamente autista. E crise social e económica, instalada a partir das convulsões dos mercados financeiros, com um impacto brutal em múltiplos sectores da sociedade e consequências políticas de afirmação da extrema direita, nomeadamente em França, onde Marine Le Pen consegue impor o seu discurso populista e angariar 42% dos votos na corrida às presidenciais do ano passado. É num contexto de grandes tensões, portanto, que Laurent Petitmangin posiciona a acção, abraçando o leitor com a força das palavras e convidando-o a tomar o lugar daquele pai e a agir.
Extraordinariamente bem escrito, o livro é dotado de um magnetismo tal que é impossível que o leitor não se veja preso a ele de forma inabalável, por muito desconfortável que possa sentir-se com os sobressaltos da narrativa. Nessa medida, “Quando a Noite Cai” possui a força das grandes histórias, que Petitmangin amplia graças a uma prosa depurada, assente em frases curtas e objectivas e na omnipresença do narrador enquanto personagem principal. É ele que perseguimos e por ele somos perseguidos, como quem tateia no escuro em busca de um lugar de salvação. As duas últimas páginas obrigam-nos, num exercício de elipse, a rever passo a passo o trajecto percorrido por pai e filho. No deve e haver dos sentimentos, somos forçados a escrutinar as nossas atitudes, vermos ao lado de quem nos sentamos, percebermos que pode haver coisas piores do que engolir o orgulho. Aquelas duas páginas vêm dizer-nos que, para tudo, há uma saída. Mas, a que preço?
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