TEATRO: “Ensaio de Orquestra”,
a partir do filme “Ensaio de Orquestra” (1978), de Federico Fellini
Direcção | Tónan Quito
Texto e dramaturgia | Filipe Melo, Tónan Quito
Música original | Filipe Melo
Interpretação | António Fonseca, Paula Diogo, Sara de Castro, Tónan Quito. Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal: André Ribeiro, António Almeida, António Morais, Bernardo Tinoco, Eduardo Lála, Gonçalo Marques, Inês Matos, Jéssica Pina, João Capinha, José Almeida, José Silva, José Soares, Luís Cunha, Margarida Campelo, Paulo Gaspar, Pedro Felgar, Ricardo Sousa, Rui Ferreira, Tomás Marques
Cenografia | F. Ribeiro
Figurinos | José António Tenente
Produção | HomemBala
80 Minutos | Maiores de 12 anos
Teatro Aveirense
17 Mar 2023 | sex | 21:30
“Ensaio de Orquestra” começa por ser um filme de Federico Fellini, realizado em 1978. Um filme dentro do filme, para ser mais preciso, já que esta Orquestra, em noite de ensaio, recebe a visita de uma equipa de televisão que trabalha na feitura de um documentário. Hesitantes quanto à ideia de estarem a ser filmados, os músicos lá vão abordando a forma como encaram o seu trabalho, a versatilidade e beleza dos respectivos instrumentos, o que os aproxima e separa. Aos poucos, porém, acabam por relegar as melhores intenções para segundo plano, acabando por deixar vir ao de cima o pior que há em si, os problemas de cada um, a precariedade das relações com os restantes elementos da Orquestra. De repente, tudo é posto em causa, da localização de uma simples cadeira ou da pronúncia da Madeira, aos direitos laborais dos músicos ou à forma como o maestro conduz a Orquestra. A presença da televisão ajuda a potenciar a revolta - quem pode desdenhar do direito inalienável aos seus 15 minutos de fama? -, a contestação sobe de tom, a violência e o caos instalam-se.
“Ensaio de Orquestra”, a peça, levou-me a rever “Ensaio de Orquestra”, o filme. Enriquecedor a todos os títulos, este exercício permitiu-me pôr “os pontos nos ii” em relação a um filme que, injustamente, considerei sempre como menor no conjunto da obra de Fellini, demasiado datado, mas que, afinal, se mostra enorme de actualidade, com um carácter premonitório, quase profético. Por outro lado, deu-me a oportunidade de valorizar o trabalho de adaptação de Filipe Melo e Tónan Quito, a forma como se colam fielmente ao texto e o preenchem de elementos subtis. Uma trompete toma o lugar de um violino, uma tuba faz-se passar por um contrabaixo, a harpa transmuta-se em guitarra. Toscanini é Wynton Marsalis, Duke Ellington substitui Wagner, troca-se um solo de Verdi pelo “Moonlight Serenade”, de Glenn Miller. A “grande cidade” de Afragola toma o nome de Estarreja, a FIAT é agora a Auto-Europa. O sentimento que sustenta peça e filme e as respectivas mensagens, esses permanecem os mesmos, deixados intactos na sua força e pertinência.
“Orquestra. Terror. Morte ao Director!”. As palavras de ordem sucedem-se, “metrónomo” rima com “autónomo”, o clima é de anarquia absoluta. Os protestos sobem de tom a um ponto insustentável. O auditório desaba, a plateia estremece (literalmente). Tal como no filme (o final esmagador, o discurso de ódio falado em alemão), também a peça pede que não nos deixemos levar pelas aparências. Aqui, o desvio em relação ao filme é maior, com Filipe Melo a sentir a necessidade de escrever todo um discurso adaptado aos momentos tremendos que vivemos por estes dias. Populistas, reaccionárias, as palavras do maestro negam a possibilidade de coabitação entre liberdade e autoridade, apelando a esta última como única forma de manter a coesão e “salvar” a música e os músicos. Um grande momento de teatro de intervenção que nos vem lembrar, mais do que nunca, a importância de manter a guarda alta face aos extremismos de direita que não param de subir de tom. Uma palavra final para os actores, a grande maioria deles habituada aos palcos, mas em diferentes papéis. Foi muito bom encontrar o Luís Cunha, o João Capinha, a Jéssica Pina, o Tomás Marques e tantos outros em novos papéis e ver como se desenrascaram tão bem, a interdisciplinaridade entre a música, o teatro e o cinema a funcionarem na perfeição com o seu contributo. Um belo momento de teatro que importa reter.
[Foto: Paulo Pacheco | https://www.facebook.com/CCVF.Guimaraes]
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