LIVRO: “O Perfume das Flores à Noite”,
de Leïla Slimani
Texto original | “Le parfum des fleurs la nuit” (2021)
Tradução | Isabel Castro Silva
Ed. Alfaguara, Março de 2022
“Em que armadilha fui cair? Porque aceitei escrever este texto, se estou plenamente convencida de que a escrita deve responder a uma necessidade, a uma obsessão íntima, a uma urgência interior? De resto, quando os jornalistas me perguntam porque escolhi dado tema para o meu romance, vejo-me sempre em apuros para responder. Invento qualquer coisa, uma mentira credível. Se lhes dissesse que são os nossos temas que nos escolhem, e não o contrário, tomar-me-iam sem dúvida por uma pedante ou por uma louca. A verdade é que os romances se nos impõem, devoram-nos. São como um tumor que alastra por nós adentro, que assume o controlo de todo o nosso ser e do qual só nos podemos curar abandonando-nos a ele. Poderá a beleza surgir num texto que não vem de nós?”
Hoje não é um bom dia para a escritora. Está sentada há horas na mesma cadeira e as personagens não lhe falam. Nada lhe vem à mente. Nem uma palavra, nem uma imagem, nem o início de uma música que a levasse a assentar frases numa página. Escreveu um capítulo e de seguida apagou-o. Entretanto pensa em si, numa vida inteira ditada por obrigações, na necessidade de se calar, de se concentrar, de ficar sentada. De resistir às suas vontades, de se contrariar. Sobretudo de dizer não, “a primeira regra quando se quer escrever um romance”. Daqui a pouco irá encontrar-se com Alina, a editora que a acompanha, “uma mulher persuasiva”. Não sabe o que ela lhe quer mas vai preparando um não. Tem de mostrar-se intratável, de ostentar uma segurança contra a qual ela nada possa fazer. Numa esplanada de Paris, apesar do frio de Dezembro, com um copo de vinho à frente, a conversa flui e a proposta é clara: Escrever sobre a experiência de ficar fechada durante uma noite num museu. A isto responde a escritora que sim. Não pelo museu, não pela arte, mas “pela ideia de estar fechada”.
Ponto de partida deste magnífico “O Perfume das Flores à Noite”, dormir na Punta della Dogana, um monumento mítico de Veneza transformado em museu de arte contemporânea, permitirá a Leïla Slimani ser, ainda que pelo breve espaço de uma noite, uma solitária arredia, uma escritora fora do mundo. Animada pelo exemplo de escritores como Franz Kafka ou Rainer Maria Rilke, que souberam incorporar na sua escrita esse sonho de isolamento propício à criação, ela irá percorrer os enormes corredores do museu e encontrar num conjunto de obras ali expostas os ingredientes necessários a uma reflexão alargada sobre o modo de nos relacionarmos com a arte e o objecto artístico. Cruzando o trabalho do artista plástico com o do escritor, vendo neste e naquele o ilusionista, o demiurgo, o aprendiz de feiticeiro, Leïla Slimani mostra o quão sábias se mostram as palavras de Tchékhov para quem os grandes escritores são aqueles “que fazem surgir neve em pleno verão e que descrevem tão bem os flocos que nos sentimos tomados pelo frio e tiritamos”.
Fluido como um romance, profundo como um ensaio, “O Perfume das Flores à Noite” é uma viagem ao mundo da arte em geral e, em particular, ao mundo da escrita, à forma como os livros aplacam as nossas dores ou ampliam os nossos sonhos. Navegando entre o pensamento abstracto e o confronto com a precariedade das nossas vidas, Leïla Slimani parte ao encontro do que fomos e daquilo em que nos estamos a tornar. De uma Veneza que recebe vinte e oito milhões de turistas por ano - “quanto aos venezianos, são como índios numa reserva, as últimas testemunhas de um mundo prestes a morrer diante dos seus olhos” - à Beirute dos anos 60 que importa preservar na memória para que não seja erradicada do mapa, é todo um conjunto de lugares, dentro e fora de nós, que somos convidados a visitar. Lugares que nos surgem nos aromas de uma dama-da-noite, numa fotografia de Berenice Abbott, nos enxames de pirilampos de Pasolini ou nos diálogos de “Um Elétrico Chamado Desejo”. Lugares como a datcha de enormes vidraças onde o Doutor Jivago encontrou refúgio ou como a suite do Waldorf Astoria onde (o fantasma de) Marilyn se abrigou sob o nome de Zelda Zonk. Lugares como a catedral de Notre-Dame que “exausta, esgotada por todos aqueles que a querem consumir, imolou-se pelo fogo”.
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