LIVRO: “Shuggie Bain”,
de Douglas Stuart
Tradução | Hugo Gonçalves
Ed. Alfaguara, Setembro de 2021
“Continuaram a dançar e ela tentou sentir-se melhor, bloqueando as dúvidas e a vergonha, permitindo que os sonhos de normalidade se reacendessem. Eugene podia ser aquele que a ajudaria a sair do buraco de vazio onde ela se afundara, um amigo, um amante, um pai. Ela poderia cuidar dele, lavar-lhe a roupa, fazer-lhe a comida; e manter-se-ia impecável. Eugene poderia dar-lhe dinheiro para a casa. Poderiam ir de férias. Ele iria às compras com um carrinho num desses supermercados gigantes de uma grande cadeia. Ela iria amá-lo. Estes eram os seus sonhos.”
Quando, em 1979, Margaret Thatcher assumiu a chefia do executivo britânico, a classe trabalhadora estava longe de adivinhar que, em menos de um nada, o céu desabaria sobre as suas cabeças. Ferranha defensora do conservadorismo e do liberalismo clássico, a “Dama de Ferro” desde cedo mostrou ao que vinha, tratando de encerrar minas e desmantelar estaleiros navais, privatizar empresas estatais, cortar na despesa com serviços sociais e carregar ainda mais nos impostos. Ao mesmo tempo fez aprovar leis para amordaçar o sindicalismo e barrou o direito à greve. Pelo meio, lidou ainda com a Guerra das Malvinas. Teve o mérito de conseguir reverter a situação de marasmo económico e de inflação galopante em que o país mergulhara, mas o processo foi lento e doloroso. Três milhões de britânicos perderam os seus empregos e viram-se obrigados a sobreviver à custa de uma retaguarda social mais que precária. É neste ambiente de depressão e inércia que “Shuggie Bain” centra a acção, traçando o retrato realista de uma franja social desesperançada e profundamente doente, sem força e sem ânimo para buscar a redenção.
Romance de estreia do escocês Douglas Stuart, vencedor em 2020 do prestigiado Man Booker Prize, “Shuggie Bain” faz-nos percorrer os subúrbios de Glasgow pelos olhos de Shuggie, menino forçado a ser homem demasiado cedo, cuidador precário de uma mãe com problemas irresolúveis de adição ao álcool. É de um ponto de vista privilegiado que o leitor assiste ao afundar agónico de uma família que, como tantas outras, se vê encurralada dentro de portas, sobrevivendo à custa de um subsídio miserável destinado, em grande parte, a sustentar o vício. Com Shuggie, vemos o vento cobrir de poeira negra o bairro mineiro de Pithead, as mulheres de leggings desbotadas e galochas, hordas de crianças sujas e mal vestidas a brincarem na lama, a inveja e a maledicência a tomarem conta das conversas, os contadores da electricidade sistematicamente violados, a pobreza do mobiliário, o papel de parede descolado, a falta de comida na mesa, o mais hediondo e cruel bullying, a escalada da violência doméstica, a consciência que se afunda numa lata de cerveja.
As primeiras páginas do livro são como uma mão forte e vigorosa que se estende para o leitor e o prende para não mais o largar. É imediatamente perceptível o quão poderosa e eloquente é a escrita de Douglas Stuart, devolvendo-nos o prazer dos grandes clássicos da literatura universal, de “Oliver Twist” a “Capitães da Areia”. As descrições, fortemente realistas, mergulham-nos em quadros de tons sombrios, trazendo-nos à memória imagens dos filmes de Stephen Frears, Mike Leigh, David Leland ou Ken Loach. Pautando o ritmo narrativo, a acção manifesta toda a sua urgência e vibração nos poucos momentos em que o gosto de viver parece retomar o fôlego. Na sua maior parte, porém, o tempo mostra-se sincopado e lento, acompanhando as vidas a prazo de quem, após perder a esperança, nada mais tem a perder. Como um dedo que, enterrado na ferida, escarafuncha mais e mais até aos limites do suportável, “Shuggie Bain” faz questão de se revelar por inteiro na sua incomodidade e de manter o leitor em permanente sobressalto. Uma leitura da qual se sai com a alma arranhada.
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