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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

LIVRO: "A Metamorfose de Efigénia"



LIVRO: “A Metamorfose de Efigénia”,
de Miguel Urbano Rodrigues
Ed. Calendário de Letras, Maio de 2010


“Passaram 16 anos. Mas a memória não mede o tempo com rigor matemático. Ao reler Proust ontem, meditei na contradição entre o pormenor distante, bem iluminado, e o acontecimento de ontem, já nevoento. Naqueles dias quase tudo entrava em mim como importante, abrindo sulcos profundos. Contemplava e sentia as pessoas, os acontecimentos e as coisas de uma sociedade em crise como se fora um ruminante. Esforçava-me para gravar o espectáculo da vida em movimento, sem ter consciência plena da impossibilidade de, no momento, compreender. Registava para reflectir mais tarde. Era espectador de uma viragem na história profunda que apenas se esboçava.”

Miguel Urbano Rodrigues foi escritor e jornalista. Redactor do Diário de Notícias, teve ainda importantes posições nos brasileiros O Estado de S. Paulo e na revista Visão. Após a Revolução do 25 de Abril, assumiu, juntamente com Ruben de Carvalho, a chefia de redacção do jornal Avante. Foi também assistente de História Contemporânea, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e exerceu os cargos de Presidente da Assembleia Municipal de Moura e de deputado pelo PCP, na Assembleia da República e na Assembleia Parlamentar do Concelho da Europa. Os milhares de pessoas com quem se cruzou, os países que visitou, as épocas que atravessou e os regimes políticos e seus agentes que observou e analisou, toda esta mundividência, associados a uma escrita fina e elegante e ao saber contar uma história, estão na base deste livro onde a excepcionalidade da atitude do escritor perante a existência surge como denominador comum de figuras todas elas incomuns.

De Havana a Berlim, de Estrasburgo a Kabul, à mesa de um restaurante, num quarto de hotel, no intervalo de um Seminário ou numa sala de espera de aeroporto, Miguel Urbano Rodrigues abre-nos a sua visão sobre o mundo e os outros, ampliando pontos de vista e acrescentando sempre algo de novo às nossas concepções. Mas são as personagens - maioritariamente femininas - e os seus comportamentos que tornam impactante a leitura de “A Metamorfose de Efigénia”, lançando o livro para terrenos da ficção, por muito verdadeiros que os acontecimentos possam ser. O imponderável sublinha cada um destes contos, desenleados com delicadeza e não isentos de um humor fino e subtil, quase britânico, que lhes empresta ternura e graça. As ondas de choque da guerra civil em El Salvador, os efeitos mal adivinhados de uma Perestroika a dar os primeiros passos ou as agressões do regime de Telavive a uma massacrada Palestina são só o pano de fundo para as fantasias de Efigénia, os logros de Li Tang, a tragédia de Aisha, o desgosto de Gumercinda ou a dureza de Rebeca.

Conjunto de doze contos, o último dos quais escrito por Ana Catarina Almeida, “A Metamorfose de Efigénia” fica completo com a descrição de cinco perfis, cinco figuras marcantes na vida de Miguel Urbano Rodrigues, às quais rende sentido tributo. De João Honrado, “o mais alentejano dos alentejanos” e de Carlos Lopes Pereira, “um internacionalista”, fala com o carinho de quem por eles nutre uma admiração e uma amizade inquebrantáveis. Alexandre “Alex” Pereira, o “revolucionário atípico” é outra figura de proa cujo perfil é alvo dos maiores encómios. Henri Alleg, autor do incontornável “La Question”, a denúncia da tortura que motivou o protesto solidário de Jean Paul Sartre, Roger Martin du Gard e André Malraux, entre muitos outros, é a quarta figura marcante da vida de Miguel Urbano Rodrigues enunciada neste livro. Por fim, George Labica, uma amizade tardia mas particularmente sã, alguém que pronunciou esta frase deliciosa, em jeito de confidência: “Sabes, sentir-me numa cidade governada há três décadas por comunistas, onde a fraternidade nos envolve de manhã à noite, mergulha-me num mundo sonhado cujas portas não fomos capazes de abrir.” A cidade é Serpa, ainda e sempre comunista!

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