LIVRO: “Viagem ao Coração dos Pássaros”,
de Possidónio Cachapa
Ed. Marcador Editora, Janeiro de 2015
“As paredes da encosta passaram por ela vertiginosamente, e Kika, abrindo os olhos, começou a rir, enquanto as plantas e as rochas desfilavam na vertical. O seu corpo caía a pique, volteando e revolteando como se ela fosse uma folha e o vento quisesse brincar. Kika era folha mas era tronco; era ar e era massa, era queda e era riso. Aproximou-se, o solo, perigosamente, e, por uma fracção de segundo, ela teve receio do impacto. Mas, como sempre acontecia, sentiu os braços por baixo de si; primeiro como um pressentimento, e, em seguida, desmesurados e fortes a agarrá-la e a subir de novo.”
Com uma linguagem muito simples, Possidónio Cachapa mergulha no mais elementar dos nossos gestos e emoções, deles extraindo uma história de mistério e magia que encanta e comove ao mesmo tempo. Subtis e imensamente ternos, os quadros vão-se preenchendo de cor e de vida, mesmo que as cores nos surjam carregadas de sombras e a vida seja aqui a dos pobres e tristes, despegados do mundo, com nada de seu para além do pouco que a terra dá, improváveis funâmbulos na linha que corre entre o chegar e o partir, convictos e firmes no propósito da sua própria sobrevivência.
Nesta viagem ao fundo do próprio eu, Possidónio Cachapa revela-se nas suas outras facetas de argumentista e realizador, naquilo que o livro tem de apelo visual. Centrar a acção na ilha verde é meio caminho andado para a construção deste ambiente fantástico no qual os corações tremem ao ritmo da própria terra. O resto é um filme que corre ante o nosso olhar, guiado pelas nossas memórias, pelo que fomos mas também por aquilo em que nos tornámos. Irmanado na obra de Miguel Ángel Asturias, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Gabriel Garcia Márquez ou Jorge Amado, no que têm de “realismo mágico”, “Viagem ao Coração dos Pássaros” oferece momentos de leitura delicados e brandos, apelando ao imaginário de cada um nos “acabamentos” que a história propõe.
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