LIVRO: “Egas Moniz – Uma Biografia”,
de João Lobo Antunes
Edição | Guilherme Valente
Ed. Gradiva Publicações, Dezembro de 2010 (1ª edição)
“Egas começava a escrever a receita quando o doente, que estava à sua direita, inicia os disparos. O primeiro tiro atinge a mão direita e a caneta salta-lhe da mão, salpicando de tinta a receita, cuja imagem ele inclui nas ‘Confidências’. Depois, conta Egas, ‘desviando-se para as minhas costas, ainda por excesso de precaução, despejou as cargas da pistola automática’. Só à quinta bala Egas toma consciência de que estava a ser atacado e ainda tenta pegar num tinteiro para arremessar ao agressor, mas a mão não obedece. Recebe mais dois tiros. O oitavo falha por pouco o abdómen.”
Respondendo a um desígnio de ordem familiar e afectiva – enraizado no facto de ser sobrinho-neto de Almeida Lima, braço direito de Egas Moniz e fundador da neurocirurgia portuguesa, e filho de João Alfredo Lobo Antunes, a quem Egas entregou o laboratório de neuropatologia –, João Lobo Antunes traça um retrato vigoroso do médico, político e escritor, não sem assumir que “esta é apenas uma biografia de Egas Moniz, neste caso a minha interpretação da sua vida e obra.” Estruturando o texto numa base cronológica, o autor valoriza os momentos mais marcantes da vida de Egas Moniz – dos tempos difíceis da sua infância e juventude à conquista do Nobel e à consagração tranquila, passando pelo “conspirador e político até à medula”, pelo cientista improvável e tardio ou pela década do atentado. Enriquece-os com notas de rodapé recheadas de apontamentos de carácter biográfico, textos científicos e ensaios afins, incentivando o leitor a complementar a informação e a alargá-la a partir da sua própria pesquisa em fontes citadas ou outras.
Olhando a obra no seu todo, faltou a João Lobo Antunes brincar na Quinta do Marinheiro com os manos António, Miguel e Lucianinha, sentar-se ao lado do “Abadinho” nos bancos de escola em Pardilhó, viver o retiro do Colégio de S. Fiel, ser chamado à pedra em Coimbra, abraçar lutas políticas no parlamento, antecipar uma recepção em sua casa a convidados ilustres, sentar-se em frente a uma requintada travessa de ortolans no Le Chapon Fin de Bordéus, ver Egas chegar a casa com um quadro de António Reis debaixo do braço, registar um progresso inesperado nos trabalhos científicos, seguir pelos corredores da Casa do Telhal ao lado de um doente recém leucotomizado, baixar a uma cama de hospital com o corpo crivado de balas ou recolher-se no escritório, o telegrama a anunciar a atribuição do Prémio Nobel nas mãos trementes. Não que estes episódios escapem à obra, mas falta a suprema cola da ficção a ligá-los. Essa arte não a demonstrou Lobo Antunes, fazendo com que o lado racional se sobreponha ao lado mais humano do biografado. É inegável, contudo, o interesse deste livro, na particular vertente da História da Medicina, oferecendo um conjunto de conhecimentos que vão muito além da simples curiosidade.
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