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sábado, 6 de fevereiro de 2021

LIVRO: "Dentro do Segredo"



LIVRO: “Dentro do Segredo – Uma Viagem na Coreia do Norte”,
de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal Editores, Novembro de 2012 (reimpresso em Fevereiro de 2018)


“Estávamos quase a chegar à cooperativa agrícola quando passámos por uma mulher a quem estavam a cortar o cabelo no quintal da sua casa. O carro ia muito devagar por causa dos buracos e tive a sensação de que os nossos olhares se tocaram. Eu aos solavancos dentro de um carro. Ela no centro do quintal, sentada numa cadeira, com uma toalha à volta do pescoço. Estávamos a ter dias muito diferentes, as nossas vidas eram muito diferentes, mas houve aquele instante em que nos olhámos. Como se, por um instante, tivéssemos tido acesso à realidade um do outro e, logo a seguir, nos separássemos para nunca mais nos voltarmos a cruzar.”

No meu conceito, a literatura de viagens tem um sentido eminentemente prático. Mais do que os relatos vívidos de pessoas e lugares, é suposto constituir-se em fonte de informações úteis para que, nos passos do autor, o leitor possa enriquecer a aventura da viagem, planeando-a de forma adequada e saboreando-a na plenitude. Isto leva-me directamente a “Dentro do Segredo”, um livro com este valor prático quase nulo, sobretudo porque a Coreia do Norte é daqueles países que, como tantos outros, não hesitaria em excluir da minha lista de locais a visitar, fosse sob que pretexto fosse. Daí que a razão desta leitura tenha a ver exclusivamente com José Luís Peixoto, autor de “Galveias”, “Morreste-me”, “Em Teu Ventre” ou “Autobiografia”, e com a arte da sua escrita. Uma razão mais do que válida para embarcar em tão improvável viagem.

Foi em Koreatown, Los Angeles, que José Luís Peixoto viu nascer em si o particular interesse por aquele que é o país mais isolado do mundo, o “reino eremita”. Foi ali que contactou pela primeira vez com alguns traços da cultura coreana e que conheceu Chiwan, escritor cujos pais haviam fugido da Coreia do Norte há 30 anos atrás. Destes encontros nasceu o desejo de visitar “um lugar onde nenhuma pessoa tivesse a minha aparência”, uma ideia fundada numa curiosidade quase ancestral de saber mais sobre “sociedades fechadas e sistemas políticos totalitários”. A oportunidade surgiu em 2012, por altura do centenário do nascimento de Kim-Il-sung, “líder paternal”, “líder eterno”, “pai da nação”, “general sempre vitorioso”, “sol da humanidade”, enfim, o “grande líder”. E foi assim que se viu integrado num grupo que, de Pequim, rumou a Pyongyang sem programa definido à partida, para duas semanas de visita ao país.

Ao longo de mais de duzentas páginas, José Luís Peixoto oferece-nos uma visão tão ampla quanto possível daquilo que lhe foi dado ver. Cedendo à tentação de fazer do livro um libelo acusatório contra o isolamento auto-imposto, o monolitismo da orientação política, o secretismo e as enormes idiossincrasias desta sociedade, o autor revela os pormenores da sua experiência com o refinamento de uma escrita descritiva extremamente cuidada. Aos condicionamentos impostos pelos sempre vigilantes menina Kim e senhor Kim, o autor responde com o silencio dos prédios sombrios de fachadas geométricas, a alcatifa dos corredores do hotel Yanggakdo, as estações do mais profundo Metro do mundo, as kimilsungias e kimjongilias do Festival das Flores ou o Arco do Triunfo, “como o de Paris, mas maior”. José Luís Peixoto escusa-se a tecer juízos de valor, cingindo-se aos factos para narrar esta sua aventura. Quem quiser ir além disto, saiba que estará por sua conta e risco.

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