LIVRO: “Um Passo para Sul”,
de Judite Canha Fernandes
Edição | Guilherme Valente
Ed. Gradiva Publicações, Setembro de 2019
“ – Tu não vais largar, pois não? Então deixa-me aprofundar esta introdução ao meu pensamento. Tchame esplicob un cosa. Bost trame tud, nunca bost ta toca un ded na nha liberdade. Un ded e bo desaparce. Respeit??? Respeit’m?! Hã?! E eu com isso? Respeito não é paternalismo. Respeito não é tolerância. Respeito é virar-se ao contrário todas as vezes que forem necessárias até entender que o outro não é o “outro”, que a outra não é a “outra”. És tu. Que diferente és tu, não eu. Diferente do quê, afinal? De outro sexo, de outra raça, de outra classe, de outro desejo. Diferente não, semelhante. Já ouviste com atenção a vossa conversa? Dizem “eles” e referem-se a nós, entendes? É preciso uma lata! Nós somos “os outros”, nós que há cinco séculos ardemos por aqui.”
“Um Passo para Sul” é um livro com pessoas e lugares dentro. Nisto distingue-se pouco da grande maioria dos livros (aqui apetece-me recordar o Pedro-Guilherme Moreira e o seu “Livro sem Ninguém”). Mas aquilo que Judite Canha Fernandes faz destas pessoas e destes lugares é um laborioso bordado richelieu, os seus pontos de caseado distintos cruzando as ilhas de um tecido recortado em azul e mar, os delicados picots com sotaque de gente, sobretudo mulheres: Olívia Maria, Ângela, Nha Tônia, Angel, Marilisa. Também Carlos e Josué. Do seu cruzamento saem histórias e memórias. Cartas esquecidas, uma casa de catorze, o massacre de Batepá, moreia na frigideira, a ameaça às divisórias do mundo que é um preto no porão dum barco, a caça aos comunistas no PREC açoreano. Histórias que se entretecem, que crescem para fora a partir do seu mais fundo, que dão de si na medida daquilo que exigem. Respeit!
A autora é exímia em fazer viver em nós as personagens deste seu livro. São elas que nos pedem que abracemos “toda essa margem sem sentido aparente, vinda do resto do corpo, da mística, da batida de um sentimento, das vidas anteriores”, que juntemos outras moléculas e aceitemos que o universo é uma coincidência. São elas que nos provam que os acasos são sempre consequentes, que a racionalidade é uma arrogância. E são ainda elas que nos incitam a dar valor ao tempo de uma espera, porque no fim da linha encontraremos, enfim, a paz. No dia outro, dia seguinte àquele em que virei a derradeira página depois de ler “Já repararam como cada vez que um avião levanta voo à noite parece ir de encontro a uma estrela?”, escrevo estas palavras. No corpo, como uma segunda pele, essa areia fininha que o harmatão levanta na praia de Santa Maria. Na cabeça, como um sonho, “Lapidu na bo minina”.
Sem comentários:
Enviar um comentário