LIVRO: “Grande Sertão: Veredas”,
de João Guimarães Rosa
Ed. Companhia das Letras, Outubro de 2019
“ – Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa de um bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram.”
Resulta imediato comparar o livro a uma grande peça sinfónica, com os seus Allegro e Adagio, os seus Andante e Grand Finale, banda sonora de uma verdadeira epopeia que nos leva das nascentes do Urucúia às areias do Liso do Sussuarão, dos confins da Serra da Chapada às matas do Tamanduá-tão ou ao Passo do Pubo. Por várzeas, córregos e veredas, João Guimarães Rosa menciona mais de quatro centenas de localidades reais, ao longo das quais nos faz sentir sóis escaldantes, chuvas intensas, o ferroar das mutucas, o sabor da mangaba, o cantar da fariscadeira, do sabiá-ponga ou do bem-te-vi. Em cada alto convida-nos a atentar na formusura de um rosto de mulher ou nas cores de um pôr-do-sol, da mesma forma que nos faz ver as pústulas de um lázaro ou a boçalidade de uns catrumanos. E põe-nos à fala com todos, usando termos de enorme valor etimológico, como matlotagem, enfolipado, esquipático, mandraca, pactário ou esmarte.
Com o fascínio que a novidade induz, escutamos o lento desfiar de memórias de Riobaldo Tatarana e através delas penetramos nesse sertão “do tamanho do mundo”, mergulhando no amor, no sofrimento, na força, na violência e na alegria de todos os homens e mulheres. É no confronto entre Deus e o Diabo, entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que “Grande Sertão: Veredas” se mostra em toda a sua dimensão. É na viagem que Riobaldo Tatarana faz ao interior de si mesmo que reside a grande força deste livro. Um livro que nos dá a escutar a cantiga de Siruiz ou os ralhos da mãe Bigri, que nos permite acompanhar o existir de Diadorim ou a bizarrice do galante pássaro manuelzinho-da-crôa, que nos convida a ver, com os olhos da imaginação, os buritís aos cachos, a imagem muito salvadora de Nossa Senhora da Abadia ou “os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não são, atrás das mulheres mães deles que iam apanhar água na praia do Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tristezas”. Um livro essencial!
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