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domingo, 18 de outubro de 2020

LIVRO: "Adius"



LIVRO: “Adius”,
de Vasco Gato
Ed. Abysmo, Fevereiro de 2020

“Aninho-me no corpo de Sara. Os nossos corpos iniciam o seu trânsito para a horizontalidade. Impelidos pelo cansaço, pelo luto, pelo conforto daquele enleio. O candeeiro continuará aceso. Não há um anúncio de que se vai dormir. Os pensamentos esvoaçam entre pensamentos óbvios e objectos inesperados. E a dor a intrometer-se, sem melindres. A dor que, por ora, dispensa enquadramento, mitigação. A dor a poder medrar na sua radicalidade. Se espremêssemos os seres humanos como metades de laranjas, talvez o seu sumo fosse um puro líquido álgico. Com um ou outro caroço de riso.”

Reconhecido no universo das letras como um extraordinário criador de poemas, vertidos numa vasta obra de duas décadas e, mais recentemente, reunidos na colectânea “Contra Mim Falo” (INCM, 2015), Vasco Gato vem de se aventurar por novos caminhos da escrita. Em “Adius”, fala-nos de si ao falar de um escritor que acaba de publicar o seu primeiro romance. Mesmo aceitando que toda a trama é ficcionada, há reflexos do quotidiano do autor que adivinhamos no virar das páginas e que são reveladores de vivências pessoais, de visões de princípio, de inquietações, da busca de respostas para o sentido da vida, da tentativa de tornar possível o encontro com o outro.

Tomando o pulso ao tempo e acompanhando a sua marcha inexorável, Vasco Gato reflecte sobre a urgência de viver. Para tal, centra a trama naquilo a que designa de “encruzilhada humana”, levando-nos a olhar as particularidades de um mundo que esconde mistérios insondáveis e onde o aparente adquire um peso que o próprio real não consegue alcançar. Como que a querer dizer-nos que só a morte é verdadeira, o autor mostra-se um eterno insatisfeito, cínico, vil, as relações amorosas como pedras no caminho, a posição social como um empecilho, o corpo cada vez mais desgastado, degradado, a meio caminho da decomposição.

Talvez a escrita de Vasco Gato não esteja destinada a agradar a todos, mas certamente não deixará ninguém indiferente. À poesia foi o autor buscar a arte de brincar com as palavras, de as dispor de uma forma muito própria, enchendo o ar de imagens e sons e fantasia, mesmo se as imagens são glaucas, os sons monotonais e a fantasia um homem curvado sobre o pavimento, o jorro a tingi-lo com a violência de um parto. É com deleite que se bebe cada página deste livro, dele resultando a maior das admirações pelo estilo de escrita inovador e, ao mesmo tempo, provocador e carregado de ironia. Um livro que, sem favor, se junta ao melhor dos melhores lidos neste ano atípico. Não me admiraria, inclusive, que viesse a ser reconhecido com um dos grandes prémios da literatura em língua portuguesa. Que bom seria.

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