LIVRO: “Adius”,
de Vasco Gato
Ed. Abysmo, Fevereiro de 2020
“Aninho-me no corpo de Sara. Os nossos corpos iniciam o seu trânsito para a horizontalidade. Impelidos pelo cansaço, pelo luto, pelo conforto daquele enleio. O candeeiro continuará aceso. Não há um anúncio de que se vai dormir. Os pensamentos esvoaçam entre pensamentos óbvios e objectos inesperados. E a dor a intrometer-se, sem melindres. A dor que, por ora, dispensa enquadramento, mitigação. A dor a poder medrar na sua radicalidade. Se espremêssemos os seres humanos como metades de laranjas, talvez o seu sumo fosse um puro líquido álgico. Com um ou outro caroço de riso.”
Tomando o pulso ao tempo e acompanhando a sua marcha inexorável, Vasco Gato reflecte sobre a urgência de viver. Para tal, centra a trama naquilo a que designa de “encruzilhada humana”, levando-nos a olhar as particularidades de um mundo que esconde mistérios insondáveis e onde o aparente adquire um peso que o próprio real não consegue alcançar. Como que a querer dizer-nos que só a morte é verdadeira, o autor mostra-se um eterno insatisfeito, cínico, vil, as relações amorosas como pedras no caminho, a posição social como um empecilho, o corpo cada vez mais desgastado, degradado, a meio caminho da decomposição.
Talvez a escrita de Vasco Gato não esteja destinada a agradar a todos, mas certamente não deixará ninguém indiferente. À poesia foi o autor buscar a arte de brincar com as palavras, de as dispor de uma forma muito própria, enchendo o ar de imagens e sons e fantasia, mesmo se as imagens são glaucas, os sons monotonais e a fantasia um homem curvado sobre o pavimento, o jorro a tingi-lo com a violência de um parto. É com deleite que se bebe cada página deste livro, dele resultando a maior das admirações pelo estilo de escrita inovador e, ao mesmo tempo, provocador e carregado de ironia. Um livro que, sem favor, se junta ao melhor dos melhores lidos neste ano atípico. Não me admiraria, inclusive, que viesse a ser reconhecido com um dos grandes prémios da literatura em língua portuguesa. Que bom seria.
Sem comentários:
Enviar um comentário