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domingo, 28 de junho de 2020

LIVRO: "O Fadário das Mulheres Insolentes"



LIVRO: “O Fadário das Mulheres Insolentes”,
de Afonso Valente Batista
Ed. Edições Parsifal, Janeiro de 2020


“Chamo-me Lucrécia, tenho dezoito anos, sou a ajudante da cozinheira no Solar do Turismo Rural do senhor doutor e fui violada por ele, pelo senhor doutor, que, no primeiro dia em que cheguei para trabalhar, aproximou-se de mim arrastando o pé cambado, mirou-me com olhos de carneiro mal morto amarelecidos pelo bafo mal cheiroso do charuto e pelo hálito tresandante a conhaque e, logo ali, apalpou-me as mamas como se fossem coisa sua.”


De um lado temos o solar, os barões seus donos e o gordo e anafado senhor padre Bento, o capelão do lugar. Do outro, a criadagem dos senhores barões, o sacristão, o coveiro, o Bêbado, o cabo da guarda e a rudeza das gentes mais os seus cortiços de penúria neste lugar sumido do mundo, “penedos de velhice incerta, fragas com vertentes de pasmo, pinheirais de breu espesso, uma ou outra leira grávida de batatas, gente numa tristeza persistente, vidas ao dependuro do esquecido.” Lá longe, na cidade grande plantada ao pé do rio, figurões bem-apessoados alardeiam teres e haveres e ditam leis. São os “da situação”, sob o mando do todo poderoso doutor Oliveira Salazar e do seu Estado Novo, à medida de um país com o bojo apinhado de lugares sumidos do mundo. Estão feitas as apresentações. “Outras coisas? Só esmiuçando acontecidos.”

Representar um papel definido pelo homem, aceitar o rebaixamento na esfera social e ser um modelo de obediência, dedicação e lealdade, são apenas alguns dos princípios de uma disciplinadora e castradora cartilha que, transmitida de mães para filhas, moldou a história da mulher e cristalizou o “sexo oposto” no “sexo fraco”. Marcadas com os ferretes da desigualdade, da discriminação e da violência, Leocádia, Leonilde e Leôncia, as heroínas do mais recente romance de Afonso Valente Batista, são três exemplos acabados de inferiorização e desigualdade, criaturas obrigadas a calar as mais vis afrontas e a sofrer a sujeição e a vergonha pelo simples facto de serem mulheres. São elas que conduzirão o leitor pelo mais recôndito da mente humana, onde o preconceito toma o lugar da razão, a passividade é alimentada pela doutrina e a diferença de género tudo pode e tudo sustenta.

Com “O Fadário das Mulheres Insolentes”, Afonso Valente Batista assina o seu melhor livro até à data. Transformando o verdadeiro microcosmos social que é “o lugar sumido do mundo” num laboratório das ciências do bem e do mal, o autor faz das gentes e do seu tempo o objecto de estudo. Numa linguagem crua – como crua é a vida de quem tem na vontade dos ricos e poderosos a fronteira da sua ignorância -, o livro é um fortíssimo libelo acusatório de desigualdades e imoralidades, contrapondo a vingança à humilhação, a redenção à morte. “O Fadário das Mulheres Insolentes” lê-se em permanente sobressalto, tamanhas as dores que o atravessam, tão devastadora a afronta, tão urgente a sede de justiça. Mas é, sobretudo, um livro que convida a que olhemos à nossa volta e nos demos conta de que as Leocádias, Leonildes e Leôncias de ontem e de hoje são as mesmas, como vermelho é o mesmo sangue que persiste em tingir o nosso quotidiano de infâmia e vergonha.

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