LIVRO: “A Noite da Espera”,
de Milton Hatoum
Ed. Companhia das Letras, Janeiro de
2019
“No Mato Grosso tem terra a perder
de vista, senador, disse outro homem. O problema da floresta é
muito índio e pouca estrada.
Isso é um problema?, riu o
senador.”
A narrativa tem o seu início em
finais de 1977, numa invernenta e silenciosa Paris. É aí que Martim
vive exilado, fugindo às perseguições políticas no Brasil.
Recorrendo aos seus cadernos de apontamentos e ao que a sua memória
vai ditando, é dele este olhar sobre os acontecimentos de toda uma
década marcante. É o “regresso” a Brasília e aos seus amigos
da altura – Dinah, Fabius, Vana, Àngela, Lázaro e o Nortista, ao
encenador Damiano Acante e ao livreiro revolucionário Jorge Alegre
-, para lembrar os “Anos de Chumbo” do governo Costa e Silva, os
protestos disseminados por todo o país e as primeiras vítimas da
repressão, sobretudo entre a camada estudantil.
Tal como em “Baisers Volés” ou
“Tout Va Bien”, dois filmes icónicos da Nouvelle Vague,
desprende-se de “A Noite da Espera” a mesma energia contagiante,
o mesmo fôlego intenso de uma juventude que se descobre e tudo
arrisca em nome da própria liberdade. Num tom marcadamente autobiográfico, Milton Hatoum retoma essa efervescência de um Maio de 68 apostado em mudar a face do mundo, descrevendo um tempo de renovação de valores que se ergue e afirma pela proeminente força de uma cultura jovem. Dele se retêm
relatos escritos a sangue, cenários de violência e repressão,
histórias de luta e de enorme coragem, mas sobretudo essa ideia, de
Paris para o mundo, tão bem cantada por Caetano Veloso: “É
proibido proibir”.
Primeiro volume duma trilogia à qual
Milton Hatoum decidiu chamar “O Lugar Mais Sombrio”, este é um
exercício de escrita brilhante na forma como personagens e ambientes
são descritos. Sem pesar ou nostalgia, neles se sublimam o muito de
aprendizagem e de solidão que a juventude encerra. Ironicamente, com
o “advento Bolsonaro”, nele se denunciam, também, os atropelos
aos direitos de cada cidadão, adquirindo o livro foros de uma enorme
actualidade. Agora, como há cinquenta anos, “essa política
destruidora, o Brasil nas mãos desses brutos ignorantes”, são uma
e a mesma coisa. No passar de cada página, é crescente o apelo ao
leitor para que junte as pontas deixadas soltas e funda, com as do
escritor, as suas próprias memórias. Em nome da liberdade!
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