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sábado, 7 de setembro de 2019

LIVRO: "A Noite da Espera"



LIVRO: “A Noite da Espera”,
de Milton Hatoum
Ed. Companhia das Letras, Janeiro de 2019


No Mato Grosso tem terra a perder de vista, senador, disse outro homem. O problema da floresta é muito índio e pouca estrada.
Isso é um problema?, riu o senador.”

A narrativa tem o seu início em finais de 1977, numa invernenta e silenciosa Paris. É aí que Martim vive exilado, fugindo às perseguições políticas no Brasil. Recorrendo aos seus cadernos de apontamentos e ao que a sua memória vai ditando, é dele este olhar sobre os acontecimentos de toda uma década marcante. É o “regresso” a Brasília e aos seus amigos da altura – Dinah, Fabius, Vana, Àngela, Lázaro e o Nortista, ao encenador Damiano Acante e ao livreiro revolucionário Jorge Alegre -, para lembrar os “Anos de Chumbo” do governo Costa e Silva, os protestos disseminados por todo o país e as primeiras vítimas da repressão, sobretudo entre a camada estudantil.

Tal como em “Baisers Volés” ou “Tout Va Bien”, dois filmes icónicos da Nouvelle Vague, desprende-se de “A Noite da Espera” a mesma energia contagiante, o mesmo fôlego intenso de uma juventude que se descobre e tudo arrisca em nome da própria liberdade. Num tom marcadamente autobiográfico, Milton Hatoum retoma essa efervescência de um Maio de 68 apostado em mudar a face do mundo, descrevendo um tempo de renovação de valores que se ergue e afirma pela proeminente força de uma cultura jovem. Dele se retêm relatos escritos a sangue, cenários de violência e repressão, histórias de luta e de enorme coragem, mas sobretudo essa ideia, de Paris para o mundo, tão bem cantada por Caetano Veloso: “É proibido proibir”.

Primeiro volume duma trilogia à qual Milton Hatoum decidiu chamar “O Lugar Mais Sombrio”, este é um exercício de escrita brilhante na forma como personagens e ambientes são descritos. Sem pesar ou nostalgia, neles se sublimam o muito de aprendizagem e de solidão que a juventude encerra. Ironicamente, com o “advento Bolsonaro”, nele se denunciam, também, os atropelos aos direitos de cada cidadão, adquirindo o livro foros de uma enorme actualidade. Agora, como há cinquenta anos, “essa política destruidora, o Brasil nas mãos desses brutos ignorantes”, são uma e a mesma coisa. No passar de cada página, é crescente o apelo ao leitor para que junte as pontas deixadas soltas e funda, com as do escritor, as suas próprias memórias. Em nome da liberdade!

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