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domingo, 7 de abril de 2019

LIVRO: "Maré Alta"



LIVRO: “Maré Alta”,
de Pedro Vieira
Ed. Companhia das Letras, Fevereiro de 2019


“Um dia a sorte vira e os justos vivem”

Madrugada de 8 de Dezembro de 1917. O Governo da União Sagrada liderado por Afonso Costa é exonerado, transferindo-se o poder para a Junta Revolucionária presidida por Sidónio Pais. Na mesma altura, “à mercê do céu que troveja, sacudindo paredes e crenças, e da chuva que fustiga portas e janelas e mentes inquietas”, nasce Augusto, filho de Abílio e Ana. Entre a roda da História, que tudo arrasta na sua frente, e as histórias dos já citados Augusto, Abílio e Ana, mas também de Afonso e Maria e Vicente e Lucinda e Silvestre e António e Lino e todos quantos cabem num século bem medido, se levanta este “Maré Alta”, gesta dum povo que, no seu parco heroísmo, soube fazer das fraquezas forças e se foi especializando na arte da sobrevivência. À espera desse dia em que a sorte vire...

Obra de fôlego que se estende por quase meio milhar de páginas, “Maré Alta” oferece ao leitor um retrato realista do século XX português, das suas misérias e contradições firmadas em vanglórias e glórias vãs. Nas histórias duma família que se desdobra até à quarta geração, viajamos entre a instauração do Estado Novo e a adesão à CEE, espreitamos a revolta falhada dos vidreiros da Marinha Grande e a abertura do Tarrafal, envergonhamo-nos do “neutralismo” durante a II Guerra Mundial, vibramos com a campanha do General Humberto Delgado, acompanhamos a salto os surtos migratórios que tiveram Paris por destino, gritamos a tortura nos calabouços da PIDE, seguimos “para Angola e em força”, abraçamos a França nas lutas estudantis de 68, damos vivas à liberdade naquela clara madrugada, embarcamos na euforia revolucionária de PRECs e afins e recebemos com má cara os retornados.

Pedro Vieira é exímio na forma como contextualiza os vários momentos da História, enriquecendo-os com os gostos e os sons, as modas e os tiques que os caracterizam. Eles não passam, contudo, de meros palcos para a verdadeira acção, aquela que acompanha estas pessoas, ligadas entre si por laços de parentesco, num processo sucessivo de acontecimentos que, no quase anonimato das suas existências, se poderia resumir a duas palavras: Nascimento e morte. É no modo como sustenta estas vidas clandestinas, como junta as pontas dos destinos que se escoam no silêncio das palavras que ficaram por dizer, como muito ao de leve aviva os passos que se queriam sem rasto, como cruza e descruza identidades e memórias, que o autor nos oferece um fiel retrato da natureza humana naquilo que nela há de mais íntimo e obscuro, ao mesmo tempo revelando a sua faceta de romancista notável. Só pelo prazer da boa leitura, navegar nesta “Maré Alta” é, mais do que um dever, uma obrigação!

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