LIVRO: “Maré Alta”,
de Pedro Vieira
Ed. Companhia das Letras, Fevereiro
de 2019
“Um dia a sorte vira e os justos
vivem”
Madrugada de 8 de Dezembro de 1917. O
Governo da União Sagrada liderado por Afonso Costa é exonerado,
transferindo-se o poder para a Junta Revolucionária presidida por
Sidónio Pais. Na mesma altura, “à mercê do céu que troveja,
sacudindo paredes e crenças, e da chuva que fustiga portas e janelas
e mentes inquietas”, nasce Augusto, filho de Abílio e Ana. Entre a
roda da História, que tudo arrasta na sua frente, e as histórias
dos já citados Augusto, Abílio e Ana, mas também de Afonso e Maria
e Vicente e Lucinda e Silvestre e António e Lino e todos quantos
cabem num século bem medido, se levanta este “Maré Alta”, gesta
dum povo que, no seu parco heroísmo, soube fazer das fraquezas
forças e se foi especializando na arte da sobrevivência. À espera
desse dia em que a sorte vire...
Obra de fôlego que se estende por
quase meio milhar de páginas, “Maré Alta” oferece ao leitor um
retrato realista do século XX português, das suas misérias e
contradições firmadas em vanglórias e glórias vãs. Nas histórias
duma família que se desdobra até à quarta geração, viajamos
entre a instauração do Estado Novo e a adesão à CEE, espreitamos
a revolta falhada dos vidreiros da Marinha Grande e a abertura do
Tarrafal, envergonhamo-nos do “neutralismo” durante a II Guerra
Mundial, vibramos com a campanha do General Humberto Delgado,
acompanhamos a salto os surtos migratórios que tiveram Paris por
destino, gritamos a tortura nos calabouços da PIDE, seguimos “para Angola e em força”, abraçamos a França
nas lutas estudantis de 68, damos vivas à liberdade naquela clara
madrugada, embarcamos na euforia revolucionária de PRECs e afins e
recebemos com má cara os retornados.
Pedro Vieira é exímio na forma como
contextualiza os vários momentos da História, enriquecendo-os com
os gostos e os sons, as modas e os tiques que os caracterizam. Eles não passam, contudo, de meros palcos para a verdadeira acção, aquela que
acompanha estas pessoas, ligadas entre si por laços de parentesco,
num processo sucessivo de acontecimentos que, no quase anonimato das suas existências, se poderia resumir a duas palavras: Nascimento e morte. É no modo como sustenta estas vidas
clandestinas, como junta as pontas dos destinos que se escoam no
silêncio das palavras que ficaram por dizer, como muito ao de leve aviva os passos que se
queriam sem rasto, como cruza e descruza identidades e memórias, que
o autor nos oferece um fiel retrato da natureza humana naquilo que
nela há de mais íntimo e obscuro, ao mesmo tempo revelando a sua
faceta de romancista notável. Só pelo prazer da boa leitura,
navegar nesta “Maré Alta” é, mais do que um dever, uma obrigação!
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