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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

LIVRO: "Meio Homem Metade Baleia"



LIVRO: “Meio Homem Metade Baleia”,
de José Gardeazabal
Edição | Eurídice Gomes
Ed. Companhia das Letras, Janeiro de 2018


“Os inocentes não se organizam tão bem como os culpados. Inocentes, organizem-se! Não têm nada a perder a não ser a vossa inocência! Isto tudo não passa de uma simplificação, a inocência e a culpa estão misturadas. A inocência tira a máscara e por baixo está a inocência. A culpa tira a máscara e por baixo está a inocência!”


O cabelo solto de uma mulher que ainda não o é, um motorista que conduz vagarosamente um carro ao longo dum muro que parece não mais ter fim ou a busca da palavra “pai” num dicionário, abrem as páginas deste livro, introduzindo as suas principais personagens. Não é nelas, porém, que a atenção do leitor fatalmente recai, antes nesse muro que cava diferenças e nos vem dizer que a única arquitectura que um país rico partilha com um país pobre é uma parede. Um muro que tolhe e que oprime. Que separa o presente do futuro. Um muro alto e um deserto que se estende a perder de vista aos seus pés e as bombas que o sobrevoam em ambos os sentidos. E a gente que morre todos os dias por causa dessas bombas.

Com “Meio Homem, Metade Baleia”, José Gardeazabal oferece-nos uma reflexão intensa e amarga sobre os tempos que correm, cada vez mais muros a cortarem paisagens deitadas e sobrepostas, cada vez mais linhas a fazerem história com a geografia. Entre a ficção e o ensaio, o autor ironiza com as movimentações tácticas no xadrez político global, aqui a “paz” reduzida a uma pancadinha seca de bondade, a um tiro no escuro, ali a palavra “europa” sintetizando uma frase longínqua cujo significado aumenta com a distância à medida que se aproxima da verdade dos pobres.

Na sua escrita poderosa, Gardeazabal explora o duplo significado das palavras para melhor vincar a hipocrisia do homem (a palavra “muda” tanto pode ter a ver com deslocação como com silêncio, a cada um a sua verdade). Ele mostra-nos como, de um e de outro lado do muro, se passeiam a abastança e a fome, o apego e o ódio, a vida e a morte. Como se lavam consciências na generosidade organizada, com missões humanitárias baseadas em argumentos técnicos e orçamentos sólidos e viagens intercontinentais. Como, com toda a naturalidade, trocam de posição, de sentido, de valor, as faces duma mesma moeda. Como o gigante dos mares pode ser, afinal, um punho fechado que, com fúria e raiva, fende e agita as águas estagnadas.  

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