LIVRO: “Meio Homem Metade Baleia”,
de José Gardeazabal
Edição | Eurídice Gomes
Ed. Companhia das Letras, Janeiro de
2018
“Os inocentes não se organizam tão
bem como os culpados. Inocentes, organizem-se! Não têm nada a
perder a não ser a vossa inocência! Isto tudo não passa de uma
simplificação, a inocência e a culpa estão misturadas. A
inocência tira a máscara e por baixo está a inocência. A culpa
tira a máscara e por baixo está a inocência!”
O cabelo solto de uma mulher que ainda
não o é, um motorista que conduz vagarosamente um carro ao longo
dum muro que parece não mais ter fim ou a busca da palavra “pai”
num dicionário, abrem as páginas deste livro, introduzindo as suas
principais personagens. Não é nelas, porém, que a atenção do
leitor fatalmente recai, antes nesse muro que cava diferenças e nos
vem dizer que a única arquitectura que um país rico partilha com um
país pobre é uma parede. Um muro que tolhe e que oprime. Que separa
o presente do futuro. Um muro alto e um deserto que se estende a
perder de vista aos seus pés e as bombas que o sobrevoam em ambos os
sentidos. E a gente que morre todos os dias por causa dessas bombas.
Com “Meio Homem, Metade Baleia”,
José Gardeazabal oferece-nos uma reflexão intensa e amarga sobre os
tempos que correm, cada vez mais muros a cortarem paisagens deitadas
e sobrepostas, cada vez mais linhas a fazerem história com a
geografia. Entre a ficção e o ensaio, o autor ironiza com as
movimentações tácticas no xadrez político global, aqui a “paz”
reduzida a uma pancadinha seca de bondade, a um tiro no escuro, ali a
palavra “europa” sintetizando uma frase longínqua cujo
significado aumenta com a distância à medida que se aproxima da
verdade dos pobres.
Na sua escrita poderosa, Gardeazabal
explora o duplo significado das palavras para melhor vincar a
hipocrisia do homem (a palavra “muda” tanto pode ter a ver com
deslocação como com silêncio, a cada um a sua verdade). Ele
mostra-nos como, de um e de outro lado do muro, se passeiam a
abastança e a fome, o apego e o ódio, a vida e a morte. Como se
lavam consciências na generosidade organizada, com missões
humanitárias baseadas em argumentos técnicos e orçamentos sólidos
e viagens intercontinentais. Como, com toda a naturalidade, trocam de
posição, de sentido, de valor, as faces duma mesma moeda. Como o gigante dos mares pode ser, afinal, um punho fechado que, com fúria e raiva, fende e agita as águas estagnadas.
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