LIVRO: “A Manhã do Mundo”,
de Pedro Guilherme-Moreira
Edição | Maria do Rosário
Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio
de 2011
“É possível que das cidades, e das
casas nas cidades, desapareçam as pessoas. E morram as casas. E
morram as cidades. Mas de dentro das pessoas nunca desaparecem as
suas casas ou as suas cidades, e haverá sempre uma memória para
convocar.”
Em jeito de preâmbulo, partilharei
três memórias. A primeira vai ao encontro do escritor Pedro
Guilherme-Moreira, de cujo pensamento guardava a ideia de correr à
frente das palavras, o discurso confuso, quase ininteligível, o
próprio a desaconselhar os presentes na derradeira mesa do Festival
Literário de Ovar a lerem-no. A segunda leva-nos ao 11 de Setembro
de 2001 e à perplexidade perante as imagens que a televisão ia
mostrando em directo nesse início de tarde em Portugal, as ideias
desencontradas a entrechocarem-se na mente; depois a incerteza, as
repercussões de tão tresloucado acto a ameaçarem vidas até aí
pacatas; enfim o medo tornado palpável, as histórias da História
de súbito tão mais vivas. A terceira e última é a de uma estante
numa livraria da baixa do Porto, a deliciosa profusão de livros de
autores portugueses que se alinham, o olhar a pousar nos títulos um
a um e a acabar por se deter em “A Manhã do Mundo”. Pedro
Guilherme-Moreira é o autor, o 11 de Setembro de 2001 o assunto.
Decido-me a pôr de parte o preconceito e concedo confrontar-me de
novo com a perplexidade, a incerteza e o medo. Compro o livro e
começo a lê-lo de imediato.
A primeira impressão é de espanto.
Não porque o primeiro avião acabasse de embater na Torre Norte do
World Trade Center, dando início à série de trágicos
acontecimentos que se saldariam na perda de mais de três mil vidas
humanas e numa extensa cicatriz para sempre gravada no coração da
América. Mas porque a escrita de Pedro Guilherme-Moreira é límpida,
as suas ideias claras, a narrativa seguindo uma lógica
indestrutível, as palavras a transmitirem, paradoxalmente, conforto
e segurança. Pela possibilidade que só a ficção pode conceder, o
autor acompanha, de forma serena e digna, os
derradeiros momentos de uma mão cheia de pessoas, não o filme da
vida de cada uma delas a rebobinar-se a uma velocidade vertiginosa,
antes a forma de encarar o horror e ser capaz de manter a lucidez
quando o leque de opções se escoa a cada segundo que passa.
A grande força do livro está em
provar que ninguém é dono do seu próprio destino e que situações
há para as quais não existem planos B. São pessoas erradas, no
sítio errado, à hora errada, pessoas que, por esta ou aquela razão,
poderiam estar a salvo no momento da tragédia. Ou, no verso da
questão, pessoas que se encontram a salvo quando tudo acontece, apenas
porque sim. Pessoas que poderiam ser qualquer um de nós, como bem se perceberá. Sem se
deixar enredar num estéril jogo de “ses”, Pedro
Guilherme-Moreira coloca o leitor do lado de quem nem sequer se dá conta da benção que é não ter de tomar decisões em situações-limite, levando-o a abraçar cada dia como se fosse o último e a ver a vida
como uma dádiva. Surpreendente, perturbador, inteligente e dum
humanismo que se palpa no virar de cada página, “A Manhã do
Mundo” é um dos livros mais inspiradores que li nos últimos
tempos. Naquela tarde, ao olhar para aquele estante, foi este o livro
certo, no sítio certo, à hora certa!
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