TEATRO: “Medeia é Bom Rapaz”,
de Luis Riaza
Encenação e Dramaturgia | Fernanda
Lapa
Interpretação | André Leitão e Ruy
Malheiro
Direcção de Produção | Ruy Malheiro
Escola de Mulheres, 64ª Produção
Espaço Escola de Mulheres (Clube
Estefânia), Lisboa
07 Set 2018 | sex | 22:00
Uma canção de embalar ouve-se na
sala, quando se “abrem as cortinas” dando a ver um palco dividido
em dois planos claramente distintos: um elevado, nobre, onde a acção
irá maioritariamente decorrer, e outro, inferior, fechado, escuro,
misterioso, onde tudo, afinal, parece ter a sua origem. Artifício
cénico com forte impacto visual, esta duplicidade de espaços evoca
o confronto entre o real e o aparente, marcando “Medeia é Bom
Rapaz” de forma intensa e apontando para outras leituras. Desde
logo, em torno do indivíduo e do seu “outro” - Medeia e o mal
que não consegue refrear, envolto na aparência duma mulher que se
preza a si e tudo quer aos seus -, mas também do cruzamento de
género que se evidencia nos actores “que fazem de homens que fazem
de mulheres”, do confronto entre o poder de Medeia e o poder da Ama
ou ainda da relação entre a obra original, de Eurípedes, e a
brilhante “revisão” de Luis Riaza, de 1981, trazendo para o
primeiro plano as tensões físicas, emocionais e intelectuais
próprias dum tempo em que os radicalismos políticos e estéticos se
agudizavam e as sociedades tendiam a mostrar já a sua face
definitiva, acentuando as diferenças entre o íntegro e o corrupto,
o digno e o vil, o pobre e o rico, o bom e o mau.
Centrando a acção no episódio de
Corinto – no qual a maldade atinge o paroxismo, a própria Medeia a
matar os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de
loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao
marido infiel –, a peça de Luis Riaza releva a função do próprio
teatro naquilo que ela tem de questionamento dos conceitos de
realidade, de verdade, de existência. É genial a forma como o autor
se apodera do mito clássico e o actualiza, o teatro centrado nas
questões do poder, o jogo de representação baseado nas normas e
convenções, nos mecanismos da ordem e das hierarquias. O modo como
a relação entre Medeia e a Ama passam do formal para o íntimo,
cada uma das personagens tornada espelho da outra, funciona como um
convite ao espectador a que espreite para o interior do seu próprio
mundo e seja ele também o outro de si mesmo, representação e jogo,
ficção e realidade, verdade e mentira ao mesmo tempo.
Criar um mundo físico para a peça de
Riaza, torná-lo credível através do imediatismo dos corpos que se
movem a partir duma complexidade de linhas de desejo e desempenho,
tal foi o desafio aceite por Fernanda Lapa e posto em cena com grande
sucesso no antigo Teatro do Século, em Outubro de 1992, João Grosso
e Rogério Samora nos dois papéis. Passados 26 anos, e porque toda
uma geração de potencial público não tem memória de “Medeia é
Bom Rapaz”, a Escola de Mulheres resolveu levar novamente à cena
este espectáculo, fazendo-o como “uma homenagem de gratidão aos
queridos colaboradores e amigos de 1992, alguns dos quais
infelizmente já desaparecidos”. Sem fugir do tom dessa
apresentação original, há mais de um quarto de século, a
encenadora volta a transformar o mito literário numa verdade cénica,
contando de novo com a cumplicidade de toda uma equipa onde se
destacam Ruy Malheiro e André Leitão, respectivamente como Medeia e Ama. Irrepreensíveis nos seus papéis, ambos se
mostram exímios na forma como corporizam as respectivas personagens
e lhes conferem autenticidade, entre a possibilidade transformadora
que liberta e a enganosa ilusão dum jogo. Teatro do bom, em cena até 30 de Setembro no Espaço Escola de Mulheres, em Lisboa.
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