Páginas

sábado, 15 de setembro de 2018

TEATRO: "Medeia é Bom Rapaz"



TEATRO: “Medeia é Bom Rapaz”,
de Luis Riaza
Encenação e Dramaturgia | Fernanda Lapa
Interpretação | André Leitão e Ruy Malheiro
Direcção de Produção | Ruy Malheiro
Escola de Mulheres, 64ª Produção
Espaço Escola de Mulheres (Clube Estefânia), Lisboa
07 Set 2018 | sex | 22:00


Uma canção de embalar ouve-se na sala, quando se “abrem as cortinas” dando a ver um palco dividido em dois planos claramente distintos: um elevado, nobre, onde a acção irá maioritariamente decorrer, e outro, inferior, fechado, escuro, misterioso, onde tudo, afinal, parece ter a sua origem. Artifício cénico com forte impacto visual, esta duplicidade de espaços evoca o confronto entre o real e o aparente, marcando “Medeia é Bom Rapaz” de forma intensa e apontando para outras leituras. Desde logo, em torno do indivíduo e do seu “outro” - Medeia e o mal que não consegue refrear, envolto na aparência duma mulher que se preza a si e tudo quer aos seus -, mas também do cruzamento de género que se evidencia nos actores “que fazem de homens que fazem de mulheres”, do confronto entre o poder de Medeia e o poder da Ama ou ainda da relação entre a obra original, de Eurípedes, e a brilhante “revisão” de Luis Riaza, de 1981, trazendo para o primeiro plano as tensões físicas, emocionais e intelectuais próprias dum tempo em que os radicalismos políticos e estéticos se agudizavam e as sociedades tendiam a mostrar já a sua face definitiva, acentuando as diferenças entre o íntegro e o corrupto, o digno e o vil, o pobre e o rico, o bom e o mau.

Centrando a acção no episódio de Corinto – no qual a maldade atinge o paroxismo, a própria Medeia a matar os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel –, a peça de Luis Riaza releva a função do próprio teatro naquilo que ela tem de questionamento dos conceitos de realidade, de verdade, de existência. É genial a forma como o autor se apodera do mito clássico e o actualiza, o teatro centrado nas questões do poder, o jogo de representação baseado nas normas e convenções, nos mecanismos da ordem e das hierarquias. O modo como a relação entre Medeia e a Ama passam do formal para o íntimo, cada uma das personagens tornada espelho da outra, funciona como um convite ao espectador a que espreite para o interior do seu próprio mundo e seja ele também o outro de si mesmo, representação e jogo, ficção e realidade, verdade e mentira ao mesmo tempo.

Criar um mundo físico para a peça de Riaza, torná-lo credível através do imediatismo dos corpos que se movem a partir duma complexidade de linhas de desejo e desempenho, tal foi o desafio aceite por Fernanda Lapa e posto em cena com grande sucesso no antigo Teatro do Século, em Outubro de 1992, João Grosso e Rogério Samora nos dois papéis. Passados 26 anos, e porque toda uma geração de potencial público não tem memória de “Medeia é Bom Rapaz”, a Escola de Mulheres resolveu levar novamente à cena este espectáculo, fazendo-o como “uma homenagem de gratidão aos queridos colaboradores e amigos de 1992, alguns dos quais infelizmente já desaparecidos”. Sem fugir do tom dessa apresentação original, há mais de um quarto de século, a encenadora volta a transformar o mito literário numa verdade cénica, contando de novo com a cumplicidade de toda uma equipa onde se destacam Ruy Malheiro e André Leitão, respectivamente como Medeia e Ama. Irrepreensíveis nos seus papéis, ambos se mostram exímios na forma como corporizam as respectivas personagens e lhes conferem autenticidade, entre a possibilidade transformadora que liberta e a enganosa ilusão dum jogo. Teatro do bom, em cena até 30 de Setembro no Espaço Escola de Mulheres, em Lisboa.

Sem comentários:

Enviar um comentário