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quinta-feira, 7 de junho de 2018

LIVRO: "E Se Eu Fosse Deus?"



LIVRO: “E Se Eu Fosse Deus?”,
de Fernando Correia
Ed. Guerra e Paz, Setembro de 2017


“E Se Eu Fosse Deus?” é a história do encontro de Fernando Correia, jornalista, com Henrique, um homem que “tem uma casa grande, enorme, a perder de vista. O seu tecto é o céu. O calor que lhe chega vem do sol (…). O soalho é, na maioria das vezes, de erva e pedra.” Ao longo do livro, Henrique vai encetar um diálogo com o narrador que, mais do que levá-lo a visitar os “bas fond” da cidade, o obrigará a mergulhar no mais profundo de si mesmo, à procura da resposta a essa pergunta enigmática: “E se eu fosse Deus?”. De Monsanto à Gare do Oriente, do Rossio a Pina Manique, ambos irão viver as histórias de Palmira, de Natália do Casalinho, do Dr. Magalhães, de Maria Madalena, do “homem do futebol”, de Miss Lizzy, de Maria das Dores, de Carla com o seu bebé, do Ti Chico e de muitos outros, anónimos e desprotegidos, onde se descobre tanto de humanismo e dignidade como de uma forte vergonha em não se quererem mostrar e de uma raiva ainda mais forte contra os que mandam e não têm vergonha.

Crónica duma actualidade premente, “E Se Eu Fosse Deus?” pode ser visto como um manifesto filosófico onde, no limite, a rua é sinónimo de liberdade. Sem-abrigo por opção, em nome da própria liberdade, Henrique sabe de antemão que não pode ser Deus, mas sabe o que faria e como actuaria se fosse Deus! Transitando entre a verdade do livro e a verdade de todos e de cada um, esta é uma história que convida o leitor a encontrar respostas verdadeiramente transformadoras, fazendo-o olhar em volta e levando-o a uma tomada de consciência dos problemas e da forma de os resolver com a necessária adequação e urgência. E isto não diz respeito apenas ao problema dos sem-abrigo, mas contempla igualmente a droga e o álcool, a exploração de menores, a prostituição feminina e masculina, o desemprego e a fome, a violência doméstica, o abandono dos idosos em lares e muitas outras chagas sociais que alastram nos dias de hoje.

Embora “E Se Eu Fosse Deus?” se defina como um romance, percebe-se no livro uma dimensão que vai muito além disso. A narrativa filia-se no jornalismo de investigação e segue um fio condutor que visa unir as várias histórias, sem contudo renegar a sua identidade. Fernando Correia assume-se, desde o início, como o jornalista que é e, de forma idónea, consegue levar o seu papel até ao fim, num registo realista, ao mesmo tempo acutilante e comovedor. É na verdade com que são identificados e denunciados a miséria e o caos social e moral em torno dos sem-abrigo que reside a grande força deste livro. Um livro escrito com o coração mas que consegue manter a lucidez e o distanciamento necessários para não cair na pieguice ou no moralismo fácil, oferecendo ao leitor um retrato vivo e objectivo duma realidade à qual a maioria prefere virar a cara.

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