LIVRO: “E Se Eu Fosse Deus?”,
de Fernando Correia
Ed. Guerra e Paz, Setembro de 2017
“E Se Eu Fosse Deus?” é a história
do encontro de Fernando Correia, jornalista, com Henrique, um
homem que “tem uma casa grande, enorme, a perder de vista. O seu
tecto é o céu. O calor que lhe chega vem do sol (…). O soalho é,
na maioria das vezes, de erva e pedra.” Ao longo do livro, Henrique vai encetar um
diálogo com o narrador que, mais do que levá-lo a visitar os “bas
fond” da cidade, o obrigará a mergulhar no mais profundo de si
mesmo, à procura da resposta a essa pergunta enigmática: “E se eu
fosse Deus?”. De Monsanto à Gare do Oriente, do Rossio a Pina
Manique, ambos irão viver as histórias de Palmira, de Natália do
Casalinho, do Dr. Magalhães, de Maria Madalena, do “homem do
futebol”, de Miss Lizzy, de Maria das Dores, de Carla com o seu
bebé, do Ti Chico e de muitos outros, anónimos e desprotegidos,
onde se descobre tanto de humanismo e dignidade como de uma forte
vergonha em não se quererem mostrar e de uma raiva ainda mais forte
contra os que mandam e não têm vergonha.
Crónica duma actualidade premente, “E
Se Eu Fosse Deus?” pode ser visto como um manifesto filosófico
onde, no limite, a rua é sinónimo de liberdade. Sem-abrigo por
opção, em nome da própria liberdade, Henrique sabe de antemão que
não pode ser Deus, mas sabe o que faria e como actuaria se fosse
Deus! Transitando entre a verdade do livro e a verdade de todos e de
cada um, esta é uma história que convida o leitor a encontrar
respostas verdadeiramente transformadoras, fazendo-o olhar em volta e
levando-o a uma tomada de consciência dos problemas e da forma de os
resolver com a necessária adequação e urgência. E isto não diz
respeito apenas ao problema dos sem-abrigo, mas contempla igualmente
a droga e o álcool, a exploração de menores, a prostituição
feminina e masculina, o desemprego e a fome, a violência doméstica,
o abandono dos idosos em lares e muitas outras chagas sociais que
alastram nos dias de hoje.
Embora “E Se Eu Fosse Deus?” se
defina como um romance, percebe-se no livro uma dimensão que vai
muito além disso. A narrativa filia-se no jornalismo de investigação
e segue um fio condutor que visa unir as várias histórias, sem
contudo renegar a sua identidade. Fernando Correia assume-se, desde o
início, como o jornalista que é e, de forma idónea, consegue levar
o seu papel até ao fim, num registo realista, ao mesmo tempo
acutilante e comovedor. É na verdade com que são identificados e
denunciados a miséria e o caos social e moral em torno dos
sem-abrigo que reside a grande força deste livro. Um livro escrito
com o coração mas que consegue manter a lucidez e o distanciamento
necessários para não cair na pieguice ou no moralismo fácil,
oferecendo ao leitor um retrato vivo e objectivo duma realidade à
qual a maioria prefere virar a cara.
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