LIVRO: “A Devastação do
Silêncio”,
de João Reis
Ilustrações | Lord Mantraste
Ed. Elsinore, Abril de 2018
É um encontro entre dois amigos. Ou
talvez não seja bem um encontro, talvez nem sequer sejam amigos. Mas
é, seguramente, o tempo de um capitão do Corpo Expedicionário
Português recordar os momentos de cativeiro às mãos do exército
alemão, agora que a I Guerra Mundial chegou ao fim e está de
regresso à pátria. E se para um, transformado em narrador, este é
um tempo de catarse, uma oportunidade mais de extirpar da memória acontecimentos tão vivos e marcantes, para o outro é apenas o tempo de se
impacientar, escutando uma história que constantemente se desvia de um propósito inicial, o de detalhar a ocasião em que os fonólogos
alemães gravaram as vozes dos detidos.
Uma das leituras mais imediatas que se
retiram de “A Devastação do Silêncio” vai de encontro ao
postulado de José Ortega Y Gasset, o de que “o homem é o homem e
a sua circunstância”. A narrativa é, toda ela, uma menção a um
tempo terrível, de privações de toda a ordem, um tempo marcado
pela fome e pela doença, pelas arbitrariedades, pelo expediente
fácil, de novo pela fome. E pelo silêncio, o devastador silêncio,
um silêncio palpável, auto-imposto pela circunstância de alguém se encontrar numa situação de absoluta precariedade física e moral, privado de
liberdade, a quem nada mais resta do que calar o que se sente,
impedindo-se de dar voz à torrente de sentimentos desencontrados que lhe afloram à mente. Mas a circunstância muda e, para o narrador, este encontro, ainda que indesejado, representa uma oportunidade de expiação, o discurso a subir de
tom, a náusea a adensar-se até atingir o surreal. Paradoxalmente,
do outro lado há alguém que escuta e se impacienta, pouco interessado em seguir a lógica do discurso, dispensando o essencial na ansia de beber o
acessório. Um alguém que pode até ser o leitor.
Relato mordaz duma sequência de
episódios que remetem para a I Guerra Mundial, agora que se celebra
o centenário do armistício e novos e mais devastadores conflitos se
avistam no horizonte, “A Devastação do Silêncio” é um livro
genial na análise que faz do absurdo da guerra – de todas as
guerras (!). João Reis é exímio em detalhar a fragilidade e
vulnerabilidade da condição humana, os títulos e hierarquias
extintos quando “sobreviver” é a palavra de ordem, o homem
tornado igual em tudo ao seu semelhante. Mas este é um livro que nos
fala também do valor do tempo, da sua imponderabilidade, da sua
relatividade face àqueles que suportaram situações limite e vivem
o hoje como se não houvesse amanhã e tantos outros que desconhecem
o que fazer com o tempo, dando-se ao luxo de o desperdiçar.
Finalmente, há no livro uma pontinha de Kafka, ao mesmo tempo
perturbadora e fascinante, particularmente evidente na relação
de Lang, o médico do campo de prisioneiros, com a sua mulher. Mas
isso ficará para o leitor descobrir.
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